A SOFREDORA DO VER MAURA LOPES CANÇADO (1978)

Maura Lopes Cançado

Carlos Heitor Cony - Folha de S. Paulo, 15 jun. / 2007

Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel Sinceramente, não fiquei surpreendido. Em 2003, quando fazia uma série de palestras na Sorbonne (Nantes, Lyon, Rennes e Paris), um jovem professor pediu-me para falar sobre Maura Lopes Cançado, cujo livro "O Hospício É Deus" estava estudando para uma tese de doutorado na própria Sorbonne.
Ele sentia dificuldade em encontrar material crítico e biográfico sobre a autora, sabia vagamente que eu fora seu amigo estava citado no livro- e guardara uma crônica que eu publicara na Ilustrada há tempos, falando de Maura e um pouco de sua personalidade humana e literária.
Passa o tempo e recebo, no último sábado, a visita de uma aluna que a escolheu como tema de sua tese de mestrado na PUC-Rio. Forçando a memória, lembro que, no passado, estudantes de faculdades espalhadas pelo Brasil já me haviam escrito pedindo informações sobre Maura, que também tem outro livro publicado (O Sofredor do Ver) e uma série de contos no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", no final dos anos 50.
É um fato mais ou menos comum em todas as literaturas: escritores de talento, alguns beirando a genialidade, passam desapercebidos por seus contemporâneos e somente aos poucos vão conquistando espaço entre os estudiosos fatigados de analisar as obras já exaustivamente analisadas pela massa crítica que se forma nas academias, nas editoras e na mídia. Temos alguns exemplos entre nós -e o de Maura me parece o mais recente e emblemático. Morreu há pouco, esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas psiquiátricas. Não mais escrevia, não procurava ninguém e por ninguém era procurada, a não ser por seu filho, Cesarion Praxedes, que morreu dois anos atrás. Naqueles anos, eu também colaborava no "SDJB" e freqüentava o andar ocupado pelo suplemento, cuja fauna está toda citada nos livros de Maura: Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, Mário Faustino, José Guilherme Merquior, Carlos Fernando Fortes Almeida, José Louzeiro, Alaôr Barbosa, Walmir Ayala, Barreto Borges, Oliveira Bastos e outros que agora não lembro.
Reynaldo Jardim foi o criador e era o editor do "SDJB", recebeu um conto de Maura e ficou entusiasmado, publicou-o na primeira página, na diagramação competente de Amílcar de Castro.
Foi o início de uma série de contos magistrais; falou-se em Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura.
Eu havia estreado na literatura em 1958, e Maura me procurou, dizendo que desejava escrever um romance. Tirei o corpo fora, não se ensina ninguém a escrever um romance, um ensaio, uma poesia. Ajudei-a apenas materialmente, dando-lhe uma máquina de escrever. O resultado foi O Hospício É Deus.
Não se trata de um desabafo. Mas de um mergulho complicado no seu universo interior, quando a matéria da carne se decompõe antes da morte, e sobra apenas a convulsão, "a noite escura da alma" (Maura nunca leu São João da Cruz). Convulsão que ela experimentou fisicamente na série de eletrochoques, nos acessos de cólera contra o mundo e contra a humanidade.
Em duas de suas crises mais violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos, foi libera- da por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que absolveram.
Era doce quando superava a loucura, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima.
Adolescente em Minas, ganhou um avião de seu pai, pilotava bem, batizou o aparelho com o nome de seu filho, Cesarion. Um acidente cortou a sua carreira -aliás, ela nunca pensou numa carreira, queria apenas ser ela mesma, com as suas manias, o seu sofrimento de ver o mundo e as coisas, a sua loucura, o seu deus.


    Trechos de Hospício é Deus págs. 28 a 32 - Edição do Círculo do Livro


25-10-1959
Estou de novo aqui, e isto é ——— Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho? —
Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos; trémulo, exangue — e sempre outro.
Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro — como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde — paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensurá­veis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.
Acho-me na Seção Tiüemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo. (Ou de —————— Era tão grave. Proteção? Mas aqui, onde não me parecem querer bem e sofri tanto?) ("Não me querer bem" talvez seja mi­nha maneira única de ser amada.) Havia lá fora grande incompreensão. Sobretudo pareceu-me estar sozinha. Isto faria rir a muitas pessoas: eu trabalhava no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde me cercavam de grande atenção e muito carinho. Reynaldo Jardim é o diretor e me queria bem deveras. Ó, o zelo de todos. O zelo de Reynaldo. Naturalmente, penso, por eu haver antes estado aqui, saindo para trabalhar lá. A curiosidade em torno de mim: " — Esta é Maura Lopes Cançado, a que escreveu No quadrado de Joanna? — O conto é realmente bom, mas pensar que a personagem dele é louca catatônica pas­sou a aborrecer-me (como as pessoas são estúpidas, ainda se pretendem seram gentis). Minha posição me marginalizava. As coisas simples não se ajustavam a nada em que eu pudesse tocar, sentir. Era a impressão.
Quanto tempo trabalhei no jornal? Reynaldo Jardim, Fer­reira Gullar, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores. Quase todos os bons intelectuais da nova geração. E de rir. Protetores no bom sentido, como diriam. Mas que bom sentido, se me fizerem sofrer tanto? Por que, como chegar a eles, sem desespero? — E que ignoram o quanto me custa uma palavra simples, como fui sozinha desde a infância. E de amá-los — demais e inútil — passei a odiá-los: por não me compreenderem. Não saberão jamais o quanto podem fazer sofrer uma criatura tímida e necessitada como eu: porque sinto vergonha. Gullar pareceu can­sado de mim. Ainda vendo-o imoto e inacessível não consegui desprezá-lo. Minha necessidade de afirmação deixava-me agressiva, movia-me pela redação do jornal o dia todo sem sorrir. Minha timidez. Enquanto meu ser se enrijecia, voltava-me para mim mesma à espera de um milagre que me projetasse, os outros me olhando atónitos (é ainda mais do que No quadrado de Joanna, é ainda mais). Nada acontecia a não ser eu, me repetindo dia a dia. Minha ignorância.
Destruí tudo agredindo Reynaldo Jardim. Foi uma briga feia. Briguei sozinha. Ele não ousaria ferir-me, pois tem sua própria maneira de demonstrar amor. Consegui escandalizar Carlos Heitor Cony, que já foi quase padre, é facilmente escandalizável. Além de julgar estar ferindo Reynaldo, ao falar coisas inverossímeis e degradantes a meu respeito. Algo em que pensar: se tem alguma afetividade por mim deve ter sofrido. Como me destruí.
Falei de mim tantas vilezas (já fiz isto com mamãe. Estou muito cansada).

Telefonei antes de vir a dona Dalmatie, enfermeira minha amiga. Levou-me a doutor J., pedi-lhe que me aceitasse no hospital:
— Por favor, doutor J., não sei que fazer lá fora. Estou destruída. Aceite-me no hospital. Briguei no jornal.

Ele (surpreendente) pareceu compreender. Dona Dalmatie não estava de acordo:
— Tenho um sítio sossegado. Passe uns dias lá. Quanto ao emprego, daremos um jeito. Você tem péssima memória, hein, Maura? Não me conformo em vê-la de novo aqui.
— Tenho boa memória, sei o que me espera. Mas vim disposta a ficar. A senhora não pode entender. Lembra-se de que me disse outro dia que não saí daqui recuperada? Está tudo difícil.
Fomos as duas ao IP (Instituto de Psiquiatria), onde se fa­zem internações. Ela, de lá, foi para casa. Voltei sozinha para este hospital. Doutor J. já não estava mais. Mandaram-me para a Seção Cunha Lopes (não pertence a doutor J.) A guarda que me recebeu (monstro antediluviano), Cajé, me fez imediatamen­te trocar o vestido pelo uniforme do hospital. Enquanto trocava de roupa, recebia dela as intimidações: " — Não banque a sabida nem valentona. Pensa que por ser bonita vale mais do que as outras? Saiba lidar conosco (guardas), que se dará bem. Queixas ao médico não adiantam. Vocês são doentes mesmo. Compreendeu?" Claro que compreendi, Cajé. Estou aprendendo há três anos.
Depois do jantar deram-me um quarto e dormi sozinha até o dia seguinte. Estava exausta. De manhã chovia. Puseram-me no pátio junto com as outras, percebi que nenhuma funcionária se dirigia a mim. Ah, não: dona Aída se dirigiu, dando-me um empurrão, à hora do café: " — Entre na fila. Que está esperando? Quer que te demos café na boca?". Entrei na tal fila, ainda muito cansada para revidar a agressão (das outras vezes em que estive aqui esta fila não existia).
Depois do café fui para o pátio. Ou, fui mandada para o pátio. Ainda chovia muito. Parecia-me um sonho: àquelas mu­lheres encolhidas de frio, descalças, fantásticas. Eu nem sequer pensava. Via, como se nada em mim fosse mais que os olhos, recomeçando num pesadelo (voltei, meu deus, voltei). Durante o almoço veio chamar-me uma guarda: " — O Diretor quer falar-lhe". Devia ficar estupefata (por motivos óbvios), mas nem ao menos fiquei surpresa. Se ameaçassem tirar-me os olhos, não encontrariam em mim qualquer reação. E as coisas pareciam caminhar inexoráveis.
Fui ao gabinete de doutor Paim. Recebeu-me neutro. Olhou-me como se eu fosse um irracional, nada me perguntou. Antes, falou para si mesmo: " — Está magra e abatida. Fiquei aborrecido quando aquele rapazola (Carlos Fernando Fortes de Almeida) veio tirá-la. Isto não acontecerá mais, só deixará o hospital estando em condições. Você não tem família nem alguém que a ampare. Vai ter agora um médico que te ajudará. Doutor A. é um rapaz estudioso, já te recomendei a ele. Suba à Seção Til-lemont Fontes, você ficará lá com ele (mudando de tom): nin­guém vai fazer-lhe mal, por que tem tanto medo? Ninguém te quer mal. Tenha confiança em doutor A.". Pensei: como sabe que não tenho família nem quem me ampare? Agiu como se tudo soubesse, ou como se fosse desnecessário ouvir-me. Julga que sou oligofrênica? E ainda teve coragem de perguntar-me por que tenho medo daqui. Como finge ignorar a realidade. Então, por que se tem medo de um hospício?

Entanto:

" — Ninguém te quer mal. ninguém TE QUER MAL". Subi ao terceiro andar, à Seção Tillemont Fontes. Ninguém me quer mal, pensava com força, como a proteger-me de todos, principalmente de dona Júlia, a enfermeira-chefe — que tem sua residência nesta seção e me detesta.

Conheci o médico e hoje falei com ele pela terceira vez. O tratamento que me faz tem o nome de psicoterapia. Não sei ainda quem é este homem de boas maneiras que me analisa. Preciso ganhar sua confiança. Deve estar tentando o mesmo comigo. Quando entrei a primeira vez no consultório disse-me: — Estou às suas ordens". Achei-o sofisticado, olhei-o com ironia e respondi: — Sou eu quem está às suas ordens". Ele ignora que manjo um pouco de psicanálise, já comecei um tratamento com outro médico e a primeira frase que ouvi foi esta: " Estou às suas ordens". Doutor A. deve estar muito prevenido contra mim. Fiz e sofri misérias, aqui dentro. Gostaria de sentir-me mais à vontade perto dele, expor-lhe claramente minhas necessidades. Ninguém no mundo necessita mais de um amigo do que eu. Ele é correio e cerimonioso. Mostro-me petulante e cínica. Dona Dalmatie acha-o pouco inteligente. Espero que ela esteja enganada. Já pratiquei esgrima, vejo-nos perfeitamente equipados: En garde. Preciso desarmar-me, ficar curada, deixar para sempre o hospital.
Há tempos escrevi um conto, no qual dizia ser aqui "uma cidade triste de uniformes azuis e jalecos brancos". Esta cidade se compõe de seis edifícios, abrigando, normalmente,creio, dois mil e quinhentos habitantes (não estou bem certa do número). Doentes mentais, ou como tais considerados. Além do hospital onde me encontro existem: IP (Institutode Psiquiatria), onde se fazem internações (estive lá dois meses. E caótico). Bloco Médico-Cirúrgico, Isolamento (Hospital Braule Pinto — doen­ças contagiosas, tuberculose principalmente), Hospital Pedro II e Instituto de Neuropsiquiatria Infantil. O Isolamento fica aqui perto. A noite, se não consigo dormir, ouço gritos dos doentes de lá. Não compreendo um hospital abrigando tuberculosos no Engenho de Dentro, onde o clima é o mais quente do Rio. Há também o Serviço de Ocupação Terapêutica do Centro. Serve, ou devia servir, a todos os hospitais.

Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade — talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém — parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a menor importância. Mas e eu? Serei obriga­da a repetir sempre que não sei? E verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. E terrível, deus. Terrível.
Faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhi­das sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis em­prestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. E hospício, deus — e tenho frio.


     Da Razão e da loucura (José Louzeiro)

Vivi durante cinco meses em casa de meus sogros, todo este tempo acreditando-me apaixonada pelo pai do meu marido... Mas sempre em choque com meus princípios morais. (Hóspício é Deus - Diário I) Maura Lopes Cançado.

Coisas da memória nem nunca se explicam. Acontecem. A velocidade faz com que os reflexos passem muito rapidamente pela impressora do entendimento. Na hora de verbalizá-los - outro desafio. Não conectam. São fiapos de épocas díspares. Foi esse estágio que vivi, de quarta para quinta-feira, quando li nos jornais a respeito do leilão das Teles e deparei-me com o nome Andrade Gutierrez, do Grupo AG Telecom. Durante anos, fui amigo de uma escritora de grande talento, chamada Maura Lopes Cançado. Éramos colegas-colaboradores do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que circulava aos sábados e defendia o concretismo de Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim, apoiados por Oliveira Bastos, Mário Faustino e Amilcar de Castro. Ainda que possamos discordar desse movimento literário, é impossível não reconhecer que mobilizou os meios culturais do Sul do país, por suas posições ousadas e às vezes até suicidas, pois propunha o "poema de uma nota só", como na bossa nova, e a "prosa sem palavras", ou com um palavrório rebuscado e muito louco. O Jornal do Brasil, no seu histórico prédio da Avenida Rio Branco, entre as ruas Sete de Setembro e Ouvidor, primava pela organização e arrojo. Influenciado pelo concretismo o então diagramador Amilcar de Castro havia conseguido convencer Odylo Costa, filho - redator-chefe - a abolir os fios de um ponto que separavam as colunas de composição. Nascimento Brito, genro da condessa Pereira Carneiro, não concordava com isso. Mas a saudosa senhora, admiradora de Gullar e Reinaldo, decidiu apostar na revolução poética. Por isso, o SDJB tinha redação própria, e a secretaria administrativa ficava por conta de Heloísa, no futuro sra. Heloísa Sabin, hoje viúva do cientista polonês, naturalizado norte-americano, Albert Bruce Sabin. Helô, como a chamávamos, cuidava da nossa vida funcional e organizava a folha de pagamento dos colaboradores. Era, na verdade, a "fada madrinha" do SDJB, contra a fúria do Brito e até do nosso conterrâneo Odylo, que não via as "maluquices dos concretos" com bons olhos.

Nesse ambiente de movimento intenso, foi que conheci Maura Lopes Cançado, uma menina de 18 anos, bonita e loura, uns olhos piedosos, muitos sorrisos, certa ansiedade no falar. Um dia, publicou o conto antológico: O Sofredor do Ver. Aplausos gerais: do saudoso Mário Faustino, de Assis Brasil e Oliveira Bastos, que foi quem sugeriu que os concretos lessem Sousândrade; de Jamil Firmino Pinto, Carlos Fernando Fortes de Almeida e Heitor Saldanha; de Walmir Ayala, Lélia Coelho Frota e Carlos Heitor Cony. O ano era de 1958. Todos nós estávamos prestes a estrear. Maura vinha de Minas, onde fora casada com um rico empresário. Contava histórias fantásticas. Entre outras, a do teco-teco que chegou a pilotar e desabou em cima de umas casas, no bairro onde morava. Feita a perícia, constatou-se: o aparelho não apresentava qualquer defeito mecânico. Maura abriu o jogo: tinha vontade de ver um avião cair e, estando dentro dele, a coisa lhe parecia muito mais empolgante. E foi. O casamento acabou, o marido tentou colocá-la num hospício, os parentes passaram a olhá-la "de banda". Arrumou a mala, pegou o filho, fugiu para o Rio, com o propósito de tornar-se escritora. Outro trabalho não serviria. Ou isso, ou o suicídio. Sempre que Maura começava a falar de suas aventuras, formava-se a roda de curiosos. Muitas vezes até Heloísa vinha escutar. Depois, quando descobriram que a narradora misturava alhos com bugalhos, a platéia diminuiu. Eu, não sei por que, seria escolhido como seu ouvinte permanente, função que desempenhei, até seus últimos momentos. Os anos se passaram. Maura me visitava, tarde da noite, na redação do Correio da Manhã, o jornal quase rodando. Demorava-se, contava incríveis histórias da sua vivência no Rio, um filho pequeno a criar. Por essa época, já havia passado por umas quatro ou cinco clínicas de tratamento nervoso. Tornara-se, como ele própria dizia, uma "esquizofrênica profissional", de carteirinha e tudo. Maura pobre, umas roupas mal cuidadas, mas os mesmos sorrisos e os olhos piedosos, como se pedissem perdão pelas faltas cometidas. Não tendo dinheiro para nada, nem emprego, confiou o garoto a uma vizinha. Um dia, a mulher mudou de apartamento, quando foi visitar a criança, não mais a encontrou. Seu estado emocional agravou-se. Nova internação. Extremamente perturbada, matou uma colega de enfermaria, que estava "impregnada". Maura condenada a viver por longos anos no Manicômio Judiciário. Nunca falou do crime, nem sabia direito por que estava "metida entre tantos loucos". Reclamava dos guardas que a violentavam e, se apresentava queixa na administração, diziam que tudo "invenção dela, coisa de quem não regula direito". Graças ao Sindicato dos Escritores, que entrou na "luta pró-Maura", formou-se uma comissão: eu, Nélida Piñon, Cícero Sandroni, Rubem Fonseca e Evaristo de Morais Filho. Fomos ao juiz da 11a Vara Criminal, Francisco Horta. Assumíamos a responsabilidade pela "detenta".

Maura foi colocada num pequeno apartamento em Copacabana. Enfrentou-se uma temporada de muitos problemas. Ela não estava conseguindo readaptar-se à "vida livre", criava problemas com os vizinhos e, em particular, com os porteiros Certa noite, apareceu lá em casa. Havia escrito longa carta ao radialista Haroldo de Andrade, titular de importante programa na Rádio Globo. Anunciava detalhes do suicídio que praticaria. Descreveu as perseguições que vinha sofrendo por parte de Andrade Gutierrez. Não entendi. Depois, lembrei-me que um dos médicos, no Manicômio Judiciário, chamava-se Gutierrez e, por coincidência, a imobiliária responsável pelo apartamento era Gutierrez mas, evidentemente, não tinha nada com o rico Andrade. Na cabeça de Maura nada disso importava. Havia decidido que seu grande perseguidor era Andrade Gutierrez e ponto final. Explicou: a perseguição tinha várias frentes, representadas pelos porteiros, o síndico, metade dos vizinhos do prédio, o açougueiro da esquina e até um "perigoso assassino" que se fazia passar por ingênuo afiador de facas. Propósito dos "malfeitores": enlouquecê-la. Com esse objetivo, pulverizavam um certo pó químico na cozinha do apartamento, justo na hora em que preparava a comida. Para conseguir mexer nas panelas, levantava as tampas só um pouco, e metia as mãos no vapor. Protegeu-se uns tempos com luvas de borracha, mas os dedos continuaram inchando e vez por outra até sangravam. Exibiu as mãos. Por causa do complô, estava sendo forçada a uma situação esdrúxula: metia-se toda noite num ônibus para São Paulo, dormia até a rodoviária de lá, retornava na manhã seguinte. Após ler a carta que encaminharia a Haroldo de Andrade, deteve-se no detalhe: "Será que esse Andrade da Globo não é parente dos Gutierrez? Se for, não mando minhas últimas palavras a ele. Seria uma incoerência da minha parte"!... Tranqüilizei-a e, com muito jeito, procurei fazê-la ver que certos trechos da "missiva" estavam longe do estilo da ficcionista Maura. Iniciou-se longa discussão. Ciosa de seus textos, não admitia erros gramaticais. Quase duas da madrugada ainda discutíamos as questões de estilo. E quando já não havia o que falar a esse respeito, passei a duvidar dos suicidas e de suas cartas. Romantismo! Puro romantismo!.... Coisa de quem se vai, querendo deixar saudade; querendo ser lembrado. "Mas eu não quero deixar saudade. Não quero nem que saibam que passei por este mundinho nojento", rebatia Maura, exaltada. Insisti na tese do romantismo. Generalizei: todo suicida é romântico ou, no mínimo, parnasiano. Maura achou graça e foi aos poucos se acalmando. Sentou, tomou um pouco de chá.

Já não via necessidade da carta ser tão longa. Folheou o papelório que escrevera. Umas cinco ou seis folhas de caderno. Sacudiu a cabeça, decepcionada com a perda de tempo. Sorriu de novo e adiou sine die o suicídio. A importante ficcionista Maura Lopes Cançado morreria, muitos anos depois, de infarto, mas sempre desconfiada com o Andrade Gutierrez.


     
Posfácio

     Ninguém visita a interna do cubículo 2 (Margarida Autran, jornalista - O Globo*
)


Estou tensa como as cordas de um violino. Se relaxar eu morro.

A tensão foi forte demais: há duas semanas, em seguida a uma insuportável dor de cabeça, a escritora Maura Lopes Cançado acordou cega do olho esquerdo, como pouco antes já havia acontecido com o direito. Cega, presa num cubículo de um metro imundo e infestado de percevejos, abandonada pêlos amigos, esquecida pêlos que a apontaram como a melhor escritora de 68 por seu livro "O sofredor do ver", ela é um ser humano em desespero. Física e psiquicamente doente, desnutrida, olhos e dentes exigindo cuidados imediatos, sem nenhum tratamento psiquiátrico, da Maura que surgiu como revelação no "Suplemento dominical do Jornal do Brasil", em 58, resta apenas a desconcertante lucidez e a surpreendente inteligência. Vítima do sistema psiquiátrico que ela própria foi das primeiras a denunciar em seu romance de estréia, "Hospício é deus", lançado em 65, Maura Lopes Cançado está hoje irregularmente detida no Hospital Penal da Penitenciaria Lemos de Brito, junto com presos comuns portadores de todos os tipos de moléstias contagiosas. Para o juiz Benedito Motta Mello, da Vara do 2° Tribunal do Júri, onde em outubro de 74 ela foi considerada penalmente irresponsável, sua situação é "ridícula e triste".
Visita para a Maura?
A surpresa do guarda se justifica. Há meses não aparece ninguém para visitar a interna do cubículo 2. E, depois de minuciosa­mente revistada, ao contrário do que acontece com os outros visitantes, não sou conduzida a cela, mas a um pátio interno, um árido triângulo cimentado onde três arvores desgalhadas são circundadas por bancos de cimento. Debaixo do banco que me é apontado, um rato morto.
— Ora, isto não é nada. De noite há centenas deles correndo por aqui.
Ato contínuo, o guarda providencia a retirada do rato, cujo cheiro pútrido torna o ar irrespirável. Um interno o pega com uma pá e o joga por cima de um portão de ferro. Por um buraco, espio o outro lado. E a lavanderia do hospital.
— Ela vai demorar. Leva horas se arrumando.

A informação vem acompanhada de um riso debochado. Maura demora se arrumando. Três anos de cadeia não lhe roubaram a vaidade, o respeito por seu próprio corpo. Afinal ela surge, trôpega, amparada e ofuscada pelo sol que há muito tempo não a aquece. O banho de sol também lhe é negado. Precocemente envelhecida, os cabelos manchados por uma tintura antiga, mal se equilibrando sob os sapatos de plataforma. Maura não procura disfarçar sua intensa emoção. Não sabe se acende o cigarro ou se enxuga as lágrimas. Tem tanto o que falar, tanto o que perguntar. Seu único contato com o mundo exterior é um radinho de pilha. Nem ler ela pode mais. Sobre a íris do olho direito é visível um círculo branco, como uma lente de contato opaca.
— Eu estava apavorada com ameaças de espancamento. Uma noite tive uma dor de cabeça horrível e, de manhã, não enxergava mais com esta vista. Não sei o que me aconteceu. Aqui não tem oftalmologista e eu não posso sair para ir a um médico.

Com a outra vista ela também vê muito pouco, cada vez menos desde que, ao ser transferida do Presídio de Bangu para este local, há oito meses, sumiram com seus óculos. De todos os seus pertences — livros, máquina de escrever, alguma roupa e produtos de toucador —, apenas os óculos e os originais de seu terceiro livro desapareceram. Os livros de Maura incomodam porque ela não tem medo de falar.
"Estou no hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: tremulo, exangue — e sempre outro. Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro — como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde — paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: hospício é não se sabe o quê, porque hospício é deus". ("Hospício é deus", 1965)
Maura nasceu numa fazenda do interior de Minas, rica e mimada. Foi uma criança precoce, "monstruosamente inteligente, perplexa e sozinha". Aos catorze anos quis ser aviadora e, no aeroclube onde pretendia obter um breve de piloto, conheceu um jovem aviador pouco mais velho do que ela com quem se casou. O casamento durou doze meses ao final dos quais Maura se viu com um filho e sem condições de reintegrar-se na preconceituosa
sociedade mineira. Tinha apenas dezoito anos quando se internou pela primeira vez num sanatório.
"Ninguém entendeu esta internação a não ser eu mesma: necessitava desesperadamente de amor e proteção... O sanatório parecia-me romântico e belo. Havia um certo mistério que me atraía. "A partir daí sua vida foi uma interminável e sofrida peregrinação por caros sanatórios particulares e, quando o dinheiro acabou, por hospitais públicos. Foi em sua terceira passagem pelo Hospital do Engenho de Dentro que ela escreveu "Hospício é deus". E foi na Casa de Saúde Doutor Eiras, durante uma crise — e valendo-se da deficiência de segurança, indispensável numa casa especializada em doenças mentais —, que Maura matou uma outra interna.
"Devo escrever sempre no princípio de cada página do meu diário que sou uma psicopata. Talvez esta afirmação venha a despertar-me, mostrando a dura realidade que parece tremular entre esta névoa longa e difícil que envolve meus dias, me obrigando a marchar, dura e sacudida — e sem recuos." ("Hospício é deus").
Na segunda visita deixam-me ir a cela, um cubículo mínimo atulhado de livros onde mal há espaço para uma pessoa se mover. Além da cama ha, debaixo da janela, um vaso sanitário e uma pequena pia, onde Maura toma banho, alerta ao visor da porta que pode ser aberto a qualquer momento por um guarda. Antes dela esta cela foi ocupada por um tuberculoso. Na do lado, convalesceu um portador de hepatite. No cubículo 40 há um leproso. Ou melhor, "hanseático", como prefere o médico para não traumatizar o doente.
Encontro uma Maura mais esperançosa, menos angustiada, remoçada até em suas calças compridas. Ela toma café frio numa caneca de plástico encardida e pede que lhe leve frutas ("Não gosto de maça nem de pêra. São frutas de doente. Prefiro goiaba, caqui"). Quando chega o jantar, uma sopa pouco convidativa num prato de alumínio, folheamos juntas uma revista de moda (ela enxerga apenas sombras coloridas e pede que eu lhe descreva as roupas). Faz até questão de me mostrar suas botas de cano longo.
Maura Lopes Cançado foi julgada na 2a Vara do 1° Tribunal do Júri. No dia 15 de outubro de 1974 foi absolvida, "considerada incapaz de atender ao carater criminoso do fato que praticou". Mas o juiz impõe a ré a medida de segurança de internação em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de seis anos. E aí esta o impasse: o manicômio judiciário não recebe mulheres. Era impossível para Maura sobreviver em liberdade. Tinha medo de matar, de se matar.
— Fui então ao juiz e pedi para me prender. Eu pensava que numa cadeia a gente entrava e, desde que ficasse quietinha numa cela, poderia ler, reescrever meu livro.
Maura esteve na carceragem feminina São Judas Tadeu, na de Agua Santa em Bangu (onde fez uma entrevista com Lou para "Fatos e Fotos" e uma reportagem sobre o presídio, esta nunca publicada), no serviço de Biopsicologia e agora está no Hospital Penal da Penitenciária Lemos Brito. Depois de três anos de cela em cela, viu que a cadeia não era bem o que imaginava.
"Ao mesmo tempo ridícula e triste é a situação. Ridícula porque constata não contar o sistema penitenciário do mais importante estado da federação com um órgão especializado para o internamento da acusada, reconhecidamente perigosa. Triste porque, para dar-se a acusada o tratamento de que ela necessita, não ficará sujeita à vigilância que a garantia da ordem pública aconselha. Diga o curador da acusada em que estabelecimento particular deseja interná-la." (Benedito Motta Mello, juiz substituto dali Vara do 2 ° Tribunal de Júri) Maura, funcionária aposentada do Ministério da Educação e Cultura, não tem condições de pagar uma casa de saúde particular. O Pinei, inquirido pelo juiz, diz que poderia aceitá-la, mas "no momento está em reformas" e indica o Hospital Pedro H. Este nega-se a recebê-la porque funciona como hospital aberto. O Hospital Psiquiátrico Penitenciário Nelson Hungria nem sequer respondeu. Maura não pode esperar mais.
Terceira visita. O cubículo está cheio de lixo, pontas de cigarro por toda parte, tudo está em desordem e malcheiroso, moscas sobrevoam as canecas de café frio onde bóiam formigas. Sobre a cama, desalinhada, fronha e lençóis imundos. Maura me recebe descabelada, de camisola, toda angústia. Esta cega.
— Você não sabe o que é ficar cega, o medo que a gente tem. Um troço infernal. Não tomo mais banho, com medo de pegar o sabão e ser um bicho. Não consigo dormir com medo de que joguem um rato pela janela.
Coloco em suas mãos um sanduíche que trouxe da rua. Ela o devora apressada, faminta.
— Não como mais a comida daqui. Outro dia me trouxeram uma comida podre, a carne cheia de bichos e fedorenta. Me cha­mam de "madame", "minha tia", "minha avó". E disseram tambem "é presa, tem que comer escarrado, comida, cuspida". Não posso mais comer. Tenho medo. Senti gosto de amoníaco no café. Uma vez um médico da Biopsicologia me disse: "Vão procurar te massacrar porque não gostam de pessoas inteligentes. Você é artigo 22 e sua ligação com a imprensa é uma faca de dois gumes. Se aceitar se corromper, pode ter uma boa vida na cadeia. Você tem força". Agora o que eu quero é salvar minha vida.
Numa pequena agenda ela anota uma série de coisas e me pede que leia. E difícil. Sem enxergar, escreveu palavras superpostas, garatujas. Falando aos borbotões, faz um relato de tudo o que viu e viveu nesses três anos.
— Se puserem você numa caixa cheia de pulgas, as pulgas vão ter um valor imenso para você. Você não vai se interessar pêlos intelectuais, por exemplo, porque não tem nenhuma relação extracaixa.
Ela precisa urgentemente sair da caixa.
— O juiz decreta que até 1980 eu sou louca. A partir daí cessa minha periculosidade. Por que esta onipotência, esta onisciência do juiz? Depois o advogado grita que eu estou ilegalmente presa. Por que então estou presa?
Qual será a real periculosidade de uma pessoa cega? O Estado não tem local adequado para acolher Maura Lopes Cançado. Não seria o caso, então, de financiar seu tratamento numa casa de saúde particular? E o Ministério da Educação, do qual ela é pensionista?
"Como punir a inconsciência é o que não entendo. Entretanto, o médico, depois de rotular um indivíduo de irresponsável, inconsciente, exige deste mesmo indivíduo a responsabilidade de seus atos ao mandar (ou permitir que se faça) castiga-lo. De que falta pode um louco ser acusado?
De ser louco? E o que venho observando e sentindo na carne.

    *Matéria  publicada no jornal "O Globo" em 1978. Depois de cumprir sua pena. Maura chegou a viver em liberdade. Operou a vista, voltando a enxergar. Internou-se numa clínica particular no Rio de Janeiro. Estes são os seus dois livros publicados. A autora de "Hospício é deus" e "O sofredor de ver". Maura, nasceu em São Gonçalo do Abaete, município de Minas Gerais, em 27 de janeiro de 1930. Devido aos desequilíbrios emocionais, acrescidos com a retirada de seu filho por uma vizinha, acabou-se em hospícios, aonde chegou a assassinar uma outra paciente, e morreu com 64 anos, em 1993.

 

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