Eva e a fruta estranha

Eva e a fruta estranha
(Tekka*)
eva
Um conto para meu amigo Mário Pacheco

Estava eu posta em sossego, recém-criada, admirando meu jardim, que ainda rescendia a terra úmida e fresca. Era o primeiro domingo do mundo. Não havia participado da inauguração. Quando emergi das águas, já encontrei o condomínio funcionando. O Criador entregara a criação a meu parceiro, de cuja costela alguns, erroneamente, supunham que eu tinha sido feita.

Muito curiosa, fui lendo as plaquinhas com que meu companheiro havia denominado as árvores, as flores, as frutas, os animais. Estava tudo rotulado, com nomes que se tornariam definitivos para todo o sempre.

Eis senão quando aparece-me uma criatura rastejante, de olhos miúdos e pupilas verticais. Olhava-me firme e insistentemente. Trazia na boca uma fruta estranha, que me ofereceu. A fruta era de vermelho intenso e me pareceu apetitosa.

Li o nome da criatura na plaquinha do pescoço: serpente, mas ela me disse que preferia o nome 'víbora' – acho mais forte e impõe respeito, explicou. Retruquei que ‘serpente’ era mais amigável, ao que ela respondeu, exibindo as fortes presas: - não sou flor que se cheire ...

Entabulamos conversação sobre de onde teríamos vindo? por que? o que fazíamos aqui? Ela insinuou que sabia todas as respostas e que eu também poderia vir a sabe-las, desde que ... Desde que?

É simples, basta você comer da mesma fruta com que me alimento. Só tem um porém: o patrão construiu uma cerca elétrica em volta da árvore para que ninguém se aproxime e coma das frutas. Mas para mim isso não é empecilho – passo em qualquer fresta. Deslizo tranqüilamente para dentro do cercado e trago uma para você.

Minha natural curiosidade cresceu.- Será que não vai me fazer mal? Os avisos são bem explícitos: "Terminantemente PROIBIDO comer da fruta da Árvore do Conhecimento” – era a única condição para permanecer ali na vida mansa.

Ela sibilou, suave – sua boba, não vê que é propaganda enganosa? Puro marketing para aumentar o valor agregado ao produto. Siga-me, disse, imperiosa. Na época, eu tinha natureza obediente, e a segui. Lá chegando, vi A Árvore – não era muito diferente das demais, até parecia uma mangueira, só que as folhas tinham um tom de cipreste prateado. Na plaquinha estava escrito: APPLE, Inc.

Minha amiga (eu já a considerava assim) rapidamente adentrou o cercado, sem qualquer receio, e voltou com a fruta nas presas. – Coma! Não resisti e mordi a fruta. Não sei descrever bem o sabor – oscilava entre o ácido e o doce, mas com um travo amargo. A polpa era firme e eu já ia come-la toda, quando me lembrei do meu companheiro, pensando em levar-lhe um pedaço. Chamei-o mas ele não escutou., entregue a seus novos afazeres de síndico.

Por via das dúvidas, perguntei quais os efeitos colaterais. Ela sorriu e me confidenciou: - Nenhum! Pode comer sossegada, a razão custo/benefício é excelente. Você não será mais a mesma, agora você é a Nova Mulher. Terá o conhecimento exato das coisas passadas, presentes e futuras. Não haverá mais dualidade em seu ser, pois transitará facilmente por universos paralelos, que lhe proporcionarão a Consciência Unificada e contato com outras dimensões.

Habilmente, descortinou o que seria minha vida a partir de então: reinos, palácios, haréns e cidades inteiras se ergueriam por minha causa. Guerras e revoluções se fariam em meu nome. Todos os poemas, odes, sonetos, romances, canções, serestas, marchinhas de carnaval, seriam a mim dirigidas. Monumentos se ergueriam em minha homenagem. Minhas formas estariam nos quadros dos pintores mais famosos: nua, de lenço nos cabelos, de brinco, lendo, conversando, rindo, chorando. Minhas fotos estariam nas capas de todas as revistas. Agências de publicidade só pensariam em como atender meus caprichos. Constelações teriam meu nome. Eu seria comparada à lua e às estrelas.Minha beleza daria origem às maiores indústrias: de carros, jóias, perfumes, roupas, sapatos, hotéis, viagens, peles de animais.

Mais ainda: eu daria à luz um deus, que viria resgatar a humanidade do pecado original que eu mesma cometera. A partir desse acontecimento, todas as nações me chamariam abençoada. Meu código genético se transmitiria de geração em geração, até o fim dos tempos.

Alertou-me, porém, que tanto seria glorificada quanto espezinhada, apedrejada, humilhada, considerada inferior ao homem, comparada aos silvícolas, às crianças e aos débeis mentais. Queimada na fogueira, decapitada, execrada por espalhar o mal no mundo; escravizada, repudiada, estuprada, mutilada. Em compensação, seria também venerada, idolatrada, assunta aos céus; homenageada como mãe dos homens, mestra das crianças, enfermeira nas guerras. Faria o maior sucesso como modelo, atriz de cinema ou de Tv, promoter, apresentadora da Mtv.

Tantas loas e infâmias foram criando em mim um tumulto esquizóide. Ensandecida, esmaguei com os pés a cabeça da serpente, gritando-lhe em desespero: sua víbora! sua víbora!

Nesse momento vi que estava nua e procurei voltar ao Paraíso, de onde saíra correndo. Queria buscar uma folha de figueira ou de parreira com que me cobrir. Foi então que ouvi os portões se fechando com estrondo. Tiritando de frio e de vergonha, percebi, com horror, que minha verdadeira história estava começando exatamente ali, e que não havia mais volta.

*Escrito por Tekka às 18h10m do dia 17 out. / 2004

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