Flávio de Carvalho: o homem que incomoda (1986)
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Flávio de Carvalho: o homem que incomoda
(Matthew Shirts*)
Bons tempos aqueles em que o moderno nas artes e nas letras se debatia utópica e quixotescamente - mas com convicção - contra o passadismo. Não se preocupava muito com pré-pós-neo-retrô ou coisas do gênero. Competia aos artistas e intelectuais pegar o passado de surpresa, assaltá-lo, violentando-o para dar lugar a idéias e estéticas novas.
No continente americano, tal atitude, própria do modernismo, floresceu no vácuo deixado pelos colonizadores. Onde não havia tradições seculares na alta cultura, havia possibilidade de mudança. Onde não havia passado, havia futuro. Mais que o fim de alguma coisa, o modernismo, aqui, foi a tentativa de um começo.
Ninguém mais americano e modernista neste sentido do que Flávio de Carvalho. Engenheiro, arquiteto, pintor, urbanista, escultor, escritor, jornalista, enfim, uma espécie de renascentista da modernidade brasileira, ele vivia às voltas com o futuro. Planos e mais planos. "Roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros. roteiros.", como diria seu amigo Oswald de Andrade. Flávio era possuído da doce idéia de que o futuro, principalmente no continente americano, era dos homens e dos artistas. Bastava engatar a imaginação e desenhá-lo. Foi o que ele fez. Em 1930, no IV Congresso Pan-americano de Arquitetura, no Rio de Janeiro, ele apresentou, para constrangimento de muitos presentes, o curioso plano da chamada "Cidade do Homem Nu". Não se tratava de um gigantesco campo de nudismo, mas sim de uma cidade racionalmente planejada, cientificamente controlada, "a habitação do homem nu, sem propriedade e sem matrimônio". Na racionalidade, nas máquinas e no planejamento estava a possibilidade de libertação, do sonho, do delírio, e da mudança. Nas tradições havia apenas estagnação e rotina. A cidade do homem nu só seria possível, portanto, no continente americano, "que não herdou do passado o recalque trágico da filosofia escolástica (...) nem os tabus da velha Europa".
O próprio Flávio se sentiu obrigado a investir contra as tradições locais. Em 1931, numa performance ousada e radical que, pelo jeito, seria censurada até hoje, o nosso performático se insurgiu contra uma procissão de Corpus Christi no centro da Cidade de São Paulo. Avançou ameaçadoramente, não tirou o chapéu, e até flertou com as Filhas de Maria. Não deu outra. A massa começou a perseguir o performático, gritando "lincha, lincha". A política chegou, e Flávio acabou preso, acusado de comunista. Parece que nunca ninguém foi preso no Brasil acusado de modernista...
*Matthew Shirts, é um brazilianista que de vez em quando nos finais de semana comenta futebol na tevê e escreve nos grandes jornais.
**Resenha extraída da revista Primeiro Toque, abr. - jun. 1986 para o lançamento da biografia "Flávio de Carvalho - O Performático" escrita por Antonio Carlos Robert Moraes, publicada na coleção "Encanto Radical".
O texto "Flávio de Carvalho: o homem que incomoda", assinado por Matthew Shirts e publicado na revista Primeiro Toque (abr.–jun. 1986), é uma resenha crítica e ao mesmo tempo elogiosa da figura histórica e artística de Flávio de Carvalho, utilizando um tom leve, irônico e celebratório para destacar a importância e ousadia do artista no cenário modernista brasileiro.
A seguir, uma análise detalhada dos principais elementos e recursos do texto:
🧠 1. Tese central
A ideia que permeia todo o texto é que Flávio de Carvalho representou o espírito do modernismo no Brasil de forma radical e autêntica, especialmente no modo como ele atacava diretamente as tradições, a moral burguesa e os sistemas de poder estabelecidos. O título "o homem que incomoda" não é apenas provocativo, mas resume bem sua atuação estética e política.
🔧 2. Estrutura e estilo
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Introdução reflexiva: O autor começa com uma visão nostálgica do modernismo como movimento utópico e corajoso, que se opunha frontalmente ao passadismo.
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Argumentação histórica e simbólica: Aponta que o modernismo nas Américas floresceu por falta de tradição pesada, permitindo “um começo” e não apenas um fim.
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Encadeamento biográfico e exemplar: Flávio é introduzido como o maior representante dessa visão transformadora, por meio de seu polimorfismo profissional e seus projetos ousados (como a "Cidade do Homem Nu").
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Narrativa performática: A anedota da procissão de Corpus Christi em 1931 ilustra o espírito provocador e a teatralidade de Flávio de forma vívida.
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Fecho irônico e metacrítico: O autor brinca com a prisão de Flávio – não por ser modernista, mas "comunista" – para realçar o paradoxo da repressão cultural no Brasil.
🎭 3. Tom e linguagem
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Irônico e culto, com sabor jornalístico ensaístico.
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Uso de expressões como “lincha, lincha” e “ninguém foi preso no Brasil acusado de modernista...” revela um tom entre o humor e a crítica cultural.
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Referência metalinguística a Oswald de Andrade com a repetição de “roteiros” sugere cumplicidade com o leitor culto e familiarizado com o modernismo.
🎨 4. Conteúdo histórico e simbólico
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A Cidade do Homem Nu simboliza o sonho modernista de reformular a sociedade a partir de novos valores — sem propriedade, sem casamento, sem moral herdada.
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A performance de 1931, em plena procissão católica, antecipa a arte de performance no Brasil, com risco real e corpo político.
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O texto reconhece Flávio como "renascentista da modernidade", ou seja, alguém que buscava o futuro com o mesmo ímpeto dos homens do Renascimento, mas dentro de uma lógica anti-tradicionalista.
📚 5. Contexto editorial
A nota final esclarece que o texto é uma resenha crítica da biografia:
"Flávio de Carvalho – O Performático", escrita por Antonio Carlos Robert Moraes, publicada na coleção Encanto Radical.
Portanto, a frase "Flávio de Carvalho, o homem que incomoda" se refere tanto ao título desta resenha quanto ao espírito da biografia lançada naquele momento.
✅ Conclusão
O texto é um elogio provocativo a Flávio de Carvalho como figura-chave do modernismo brasileiro e da arte performática antes mesmo de ela ser nomeada como tal. Usa de uma linguagem refinada, irônica e informada para destacar a relevância de sua obra em 1986 — momento de redemocratização no Brasil, quando repensar os “incomodadores” do passado fazia parte do processo de reconstrução cultural.