Memórias de um Guará que Pulsa(va): Reação Cultural e Outras Efervescências (2025)

2025
9 DE MAIO

Memórias de um Guará que Pulsa(va): Reação Cultural e Outras Efervescências

Em meio a livros empilhados como torres de Babel e divagações que voam feito pipas sem linha, resolvo costurar uma história que venho teimando em adiar: a saga da Reação Cultural — movimento que sacudiu o Guará II, cidade-satélite de Brasília dividida entre Guará I e Guará II, nos anos 80, como um terremoto de versos e tintas.  Minha participação? Foi um riff de guitarra perdido na cacofonia — mas até os acordes tímidos merecem seu lugar na sinfonia. E cá estou, cutucado por Mário Pazcheco, arqueólogo de afetos que insiste em desenterrar pérolas do passado. Não para exibi-las em museus, mas para lembrar que fantasmas também dançam à luz de astros e metáforas.

A 32: Oásis no Deserto da Mesmice

A QE 32 (Guará II), foi meu porto seguro depois do naufrágio da república careta onde morei por uns meses no Guará I. 

O Geléia — Pedrinho, o alquimista de gentilezas — me acolheu numa edícula que mais parecia um pocket de poesia: paredes descascadas, chão de cimento cru e um colchão no chão que virou meu trono — e dos meus livros também. O livro sempre foi meu escudo. Naquela casinha de fundos, dividíamos café coado em meias e sonhos em prosa. A QE 32 fervilhava de gente que respirava cultura como se fosse oxigênio: poetas de boteco, músicos de praças e acampamentos, Waltinho com sua voz chorosa, o filho do vidraceiro fabricando fanzines contraculturais (levando esporro do pai), e um outro sujeito que pintava o muro da rua de madrugada só para ver o sol nascer sobre cores novas.

Com Unidade: O Circo da Resistência

Antes de chegar à QE 32, participei da criação do “Com Unidade”, no Guará I — um movimento que misturava cineclube, sarau, guerrilha cultural, política e outros tópicos. No largo do antigo Cine Karin, projetávamos filmes em telas improvisadas, enquanto a plateia discutia capitalismo como se estivesse em praça de guerra. Nos saraus, recitávamos Neruda em voz alta, como quem solta pombas em céu de chumbo.

Entre outros e outras militantes, havia Eliane, moça delicada que virou musa involuntária do saudoso Osmar. Ela caminhava entre nós como um haicai ambulante, sem saber que inflamava corações com um simples virar de página.

Osmar, o Existencialista de Xadrez

Bandeira — codinome que ganhou por ser tão enigmático quanto a poesia concreta — entrou na minha vida numa tarde de xadrez e blues. Fumava como uma locomotiva desgovernada, bebia cerveja como água e ouvia Tadeu Franco como se cada nota fosse um verso de Abaeté. Um dia, entre um xeque-mate e outro, soltou:
— Cultura é trincheira, não enfeite de estante.
Levei-o ao “Com Unidade”, onde ele se apaixonou perdidamente pelo movimento — e por Eliane. Ela, claro, namorava um sujeito que só sabia falar de política. Osmar, o sartreano, transformou-se num Quixote, escrevendo cartas de amor que nunca enviou.

Reação Cultural: O Nome que Queria Ser Lenda

Na academia do Sirih Baleia — templo de músculos e ideias — gestamos o movimento que viria a ser a Reação Cultural. Eu propus “Lobo Voador”. Queria algo que cheirasse a revolução e luar. Mas Osmar, líder carismático e devoto de Sartre, defendeu “Reação Cultural” com a paixão de quem acredita que até nome feio vira história. Fui derrotado na votação — alegaram que eu não era “da 32”, como se quadras tivessem passaporte.

Ponte Entre Dois Mundos (Ou: Como Ser um Monge Tibetano no Guará)

Acabei virando a ponte bamba entre o “Com Unidade” (velhos guerrilheiros) e a Reação Cultural (jovens sonhadores). Consegui que o grupo de teatro do Daniel Pedro trocasse os ensaios em porões por palcos ao ar livre — na academia e na praça. Enquanto malhavam “O Diabo Feminista”, os frequentadores da academia levantavam peso ao som de "ser ou não ser". Não sei quantas peças encenaram, mas tenho certeza de que o fantasma de Shakespeare riria daquela mistura.

Osmar, entretanto, seguia obcecado por Eliane. Numa noite de sarau, declamou O Ser e o Nada diretamente para ela. Ela sorriu, agradeceu e voltou para o namorado que falava de “política”. Bandeira, o existencialista, aprendeu na pele que até o absurdo tem limite.

Quando as sementes Viram Árvores

Hoje, a QE 32 é outra. Geleia virou lenda; Osmar sumiu no labirinto do tempo. O Com Unidade e a Reação Cultural são lembrados como mitos urbanos, contados entre um gole de cerveja e outro.

Mas o Abelhudo, nosso jornal mimeografado fundado cinco anos antes na QE 19, ainda assombra alguma gaveta por aí. Se um dia o encontrarem, verão que cultura, no Guará dos anos 80, não era hobby — era resistência. E que Reação Cultural, por mais genérico que soe, foi o nome certo: reagimos, sim, mesmo que apenas para não envelhecer em paz.

Escrevi estas linhas entre um café requentado e um pão de queijo murcho. Se as datas estiverem trocadas, culpo o Mário — ele é o guardião do calendário. Mas, se faltou poesia, a culpa é toda minha.

Um abraço, Anísio Vieira
Rio, maio de 2025

(Enquanto o ventilador sopra poeira de 1985 sobre o teclado)

P.S. Poético:
"Se o Guará dos anos 80 foi um sonho, que essas memórias sejam o despertador que ninguém queira desligar. Afinal, como diria Bandeira: 'Melhor ser lobo voando do que boi dormindo no pasto.'”

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