A HORA DA MORTE DA NORMALIDADE

Já fazia tempo que eu planejava laminar o interior. Antes de tudo, pintei as pranchas de branco. Depois, o boneco – várias camadas de tinta branca até ele virar o Homem de Gelo. Por um instante, pensei em cobri-lo com páginas amareladas de jornais antigos. Queria transformá-lo no Homem-Notícia, mas desisti: talvez não fosse minha linguagem.

Em outro momento, cogitei fazer dele um garçom. Mas aí começaram a pipocar por aí os comentários políticos sobre o novo filme do Superman – um herói que defende os mais fracos. Bingo! Superman. Também não foi ele retratado por Andy Warhol? Referência direta, arte pop no osso.

Eu e Gílson fomos longe: platinamos o teto e as paredes altas com mantas reflexivas. Dei um toque na iluminação com um cordão de pisca-pisca – afinal, a infância é um eterno Natal. Mas tudo precisa ser discreto, no sigilo, sem chamar muito a atenção. A gente junta as partes depois, no tempo certo.

Ontem mesmo teve show de mágica. E, entre uma gambiarra e outra, conseguimos estampar tudo com um fundo prata, lembrando o mítico ateliê de Andy Warhol – a “Factory”. Claro que a nossa versão é mais rude, mais improvisada, mais imediata. Mas ali também habita o reflexo da alma da contracultura.

Foi a primeira vez em três anos que eu e Julimar criamos algo em estado sóbrio. Sem "fumo de Arapiraca", sem cervejas deliciosas, sem o rock’n’roll estridente de sempre. Ontem, o ambiente era contido. Mas as ideias... essas fervilhavam. O som estava baixo, Ozzy Osbourne nos acompanhava. E, como sempre, a arte acontecia naquele instante de urgência espetacular – a hora da morte da normalidade.

No meio do caminho, o Hulk entrou com sua força bruta e natureza incontrolável. E, como a infância não tem idade, completamos o trio com o Fantasma de Lee Falk, em vermelho e preto, guardião eterno do mistério e da selva.

Julimar – o grande mestre do grafite. É quem dá vida às paredes com traços ousados e cores que gritam. Já à direita, Gílson: braço direito, coração disponível, e uma veia artística que pulsa em tudo que faz. É Gílson quem estica papelões, pendura panos, prende fitas e alumínios. Ele está em todas. Está em cada ação cultural que brota da nossa churrasqueira vermelha – esse espaço que virou palco, ateliê e abrigo.

Já à noite, a luz azul e rosa toma conta do cenário. As paredes brilham com os papéis laminados, os tijolos vermelhos ganham vida nova, e o velho quadro branco serve de roteiro para sonhos. Tudo vibra. Tudo resiste. Tudo pulsa com uma urgência criativa que não pede permissão.

Esse lugar, esse improviso, esse brilho caseiro... é o nosso manifesto.

Todos sabem que a vida dos artistas é “lokamente” entrelaçada entre o emocional e o criativo. Não dá pra separar. A arte pulsa onde a vida aperta. Fui seguidor das ideias gráficas e estéticas de Rogério Duarte e Paulo Iolovitch, e posso dizer com segurança: Julimar se encaixa nessa linhagem como um número alto do dado – quando cai, muda o rumo do jogo.

Mesmo com o tempo apertado por ser Gerente de Cultura, Julimar achou um brecha. Veio reviver os velhos tempos e mergulhou de cabeça na instalação que batizamos de “Infância” – um tema tão íntimo, tão necessário. Não vamos dar spoiler, só esse: não há data marcada ainda e ainda faltam trechos. A pergunta por enquanto é só:

“Vocês têm roupinhas de bebê? Têm brinquedos?”

E Julimar foi ágil, direto e criativo. Criou três retratos viscerais que falam com o olhar dos passantes. Começou pelo manequim do Super-Homem, depois veio o HULK SMASH!, estourando no azul, e por fim o Fantasma, braços cruzados, imponente. Cada pintura é um rugido visual, com sentido radical e nada passivo. É arte viva, atual e mágica. É a infância como potência.

Agora falta pouco. É chamar as bandas, afinar os últimos detalhes e deixar acontecer. A próxima instalação – talvez em setembro – já sussurra nas paredes.