Uma questão de ordem desclassificada?!


     É proibido proibir, uma nova canção engajada do poético e visionário Caetano Veloso é um dos acontecimentos máximos daquele setembro de 1968. Caetano agora em companhia dos Mutantes transformam a canção num happening durante a fase de classificação do III Festival Internacional da Canção (FIC), um esporro sonoro/visual devidamente registrado pelas câmeras da TV Globo.
     A palavra happening (acontecimento) passou a expressar algo mais; passou a significar multiplicidade de eventos revirando-se em dimensão histórica, força futurista imantando o presente e elevando linhas de passado a sofrerem guinadas e mutações.
     No Teatro da Universidade Católica (TUCA), em São Paulo diante de um público estranhamente histórico, numa noite memorável e inesquecível, Caetano Veloso faria valer toda sua sabedoria e seu estilo cool para domar as feras daquela horda que berrava enfurecidamente nas poltronas apinhadas. Para contrabalançar aquela histeria coletiva, Caetano fez um longo, inflamado, porém sereno discurso impregnado de sabedoria que iria determinar novamente os rumos da MPB.
     Algumas passagens daquela diabólica oratória: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?... Mas que juventude é essa?... Vocês jamais conterão ninguém... Vocês são iguais aos que foram na “Roda Viva” e espancaram os atores... O problema é o seguinte: estão querendo policiar a música brasileira... E vocês? Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!... Deus está solto!...
     “O episódio É proibido proibir ressume-se no seguinte: Guilherme Araújo, meu empresário, me mostrou na revista Manchete uma reportagem sobre os acontecimentos de maio em Paris que eu não quis ler, pois tenho preguiça de ler. Lembro-me que ele mesmo virou a página e disse: é engraçado, eles pixaram coisas lindas nas paredes. Esta frase aqui é linda - ‘é proibido proibir’. Eu falei. É lindíssima. Ele falou faça uma música usando esse negócio como refrão. Eu disse - ta. Passou. Eu não fiz. Daí ele me cobrou. Eu disse, faço. Achei meio boba, mas bonitinha. Todo mundo na hora achou bonita. No dia seguinte eu já a achava péssima. Até hoje só gosto do ritmo e de uma parte da letra que diz 'eu digo sim, eu digo não ao não'. Veio o festival da Globo. Eu não tinha nenhuma música bacana pra botar. Nem muita vontade de entrar no festival. Só me convenci a concorrer quando decidi pegar aquela música que eu não gostava e fazer uma esculhambação com o festival. A canção foi escondida pelo happening e pelas vaias. Sérgio Ricardo ficou intrigado nos bastidores ao ver minha alegria: ‘não entendo como vocês podem ficar tão contentes de serem vaiados’. Quando voltei para repetir a música Questão de ordem do Gil tinha sido desclassificada (o que me enfureceu porque eu achava o número dele genial) enquanto o meu É proibido proibir tinha merecido do júri as melhores notas. Entrei no teatro decidido a dar um esporro. E dei. Disse que o júri era incompetente e a platéia burra ou coisa assim. Ta lá no disco. (...) Até hoje me orgulho de tê-lo feito. E me congratulo comigo mesmo pelo fato daquela canção estar esquecida. De fato, falou-se muito do escândalo, mas o disco não vendeu e, de todas as canções que eu escrevi desde Alegria, alegria pra cá, É proibido proibir é uma das menos conhecidas do público. Jamais admitirei que alguém a tome como típica do movimento tropicália ou do meu trabalho em particular”. (Caetano Veloso).
     “Naquela noite de festival no TUCA, todos os meninotes universitários feridos, reagiram violentamente aos novos significados contidos no bloco de informações que recebiam. Depois a ânsia de ‘estar por dentro’ abrandou as iras e trouxe adesões, dentro e fora do mundinho classe A e B dos universitários”. (Rogério Duprat).
     “Quando, nos anos 60, houve uma explosão criativa na MPB, o veículo que melhor industrializou as novas idéias foi a tevê. Lembra dos Festivais da Record? Num momento, a tevê chegou a ser um veículo de vanguarda se antecipando à própria capacidade de compreensão do público, dos estudantes, em particular, dos críticos e dos próprios músicos. Refiro-me àquela dramática noite da fase paulista do Festival da Globo de 1968, quando Caetano apresentou, ou tentou e tendo o Brasil inteiro contra si, a tevê foi o veículo com o qual ele contou para fazer aquela lúcida, agressiva e mais importante denúncia, que representou a meu ver, e parafraseando John Lennon, o ‘fim do sonho’ de um dos períodos mais vivos e criativos de nossa MPB”. (Júlio Medaglia).
     “Na eliminatória paulista de um daqueles FIC’s que o Marzagão promovia, nós acompanhávamos Caetano em É proibido proibir. No dia da final paulista Gil entrou em cena tocando uma calota de carro, e foi desclassificado. Em solidariedade, Caetano retirou a música, o que acabou nos classificando para o FIC com a música Caminhante noturno, que era suplente na classificação. E lá fomos nós para o Maracanãzinho, curtir nossa grande chance. Lá chegando, vejam vocês, fomos recebidos com um abaixo-assinado dos músicos e críticos, pedindo nossa desclassificação porque usávamos guitarras elétricas e não fazíamos MPB! Ah, sim: as quatro primeiras assinaturas da lista eu me lembro bem. Eram as de Geraldo Vandré, Danilo Caymmi, Edu Lobo e Sérgio Cabral”. (...)
     "Em 'Na eliminatória', veja de novo como a 'tecnologia' - palavra usada com espanto e asco pelo narrador do Fantástico na entrevista de Arnaldo em ago. / 2004 - condiciona a música. E de quem eram as guitarras? Quem as concebeu e realizou? Quem Geraldo Vandré, Danilo Caymmi, Edu Lobo e Sérgio Cabral queriam desclassificar? E por quê? Ao porquê, respondo: porque primeiro estabeleciam rótulos (no caso, 'MPB') para depois forçar a Verdade (a Música) a caber neles, feito deficientes mentais querem meter esferas em buracos quadrados, nos testes de Q.I.. Em primeiro lugar vem a Música; depois, que se lhe ajustem as classificações! Venho escrevendo isso há anos em artigos e livros".(CCDB©).
     “O pessoal mais conservador se irritava com isso, cobrava um posicionamento - mania de classificação - o abaixo-assinado dos compositores tradicionais diziam que se recusavam a participar do festival por nossa culpa. Eles afirmavam que a guitarra não tinha nada a ver com MPB. E a gente lá, recebendo uma força dos baianos. Era a Tropicália quebrando preconceitos”. (Rita Lee).

     Gilberto Gil teve Questão de ordem (onde tocava calota acompanhado pelos Beat Boys), desclassificada pelo júri. Caetano revidou intercalando o discurso onde denunciava a índole reacionária da platéia e a estrutura autoritária do festival. Os baianos comunicaram à direção do festival: “Os Mutantes irão em nosso lugar” e a direção concordou pois eles davam “aquele colorido diferente” que faria bem ao festival.
     Só que a direção e Os Mutantes não esperavam pelo tal abaixo-assinado que pedia veementemente pela eliminação de Caminhante noturno e quando os Mutantes ensaiavam à tarde no ginásio, encontraram o tal manifesto contra o visual/músico/instrumental dos meninos onde a guitarra era um insulto e que declarava, entre outras coisas, a repulsa por participarem de um festival de música juntamente com pessoas alienadas que usavam uma cultura estrangeira.
     “Os Mutantes não são alienados, nem gênios, nem loucos. São criaturas comuns, com a diferença de que gostam de coisas surrealistas”. (Dirceu Soares in Realidade).
     Pode-se citar como signatários do complô, também, Sidney Miller, César Costa Filho e Beth Carvalho. Um dos poucos que recusaram a assinar o manifesto foi Nelson Motta.
     "Entro em seara alheia apenas para contar algumas coizinhas que os colunistas especializados, por uma questão ética, não
poderão contar: por exemplo, o nosso Ziraldo, teoricamente um dos partidários do chamado 'poder jovem', deu uma de esclerosado e, ao lado do Ricardo Cravo Albin, fez uma verdadeira pregação contra o excelente grupo Os Mutantes, dando uma das piores notas recebidas pelos autores de Caminhante noturno". (Tarso de Castro in, "Tarso de Castro - 75 kg de músculos e fúria - a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiro". Tom Cardoso - Editora Planeta, 2005).
     Pegos de surpresa, os desprevenidos, porém mutantes acostumados a levarem tudo na gozação, ficaram bastante desapontados e até pensaram em desistir da “grande chance”, mas depois do susto inicial, promovido por aquela situação tipicamente reacionária, começaram a elaborar o troco...
     É chegado o grande dia e na hora marcada inicia-se a saga do Caminhante noturno talvez o maior clássico dos Mutantes. Os meninos se dirigem par ao palco, faces e bochechas rosadas, sardas e longos cabelos. Próximos da iluminação e o espanto aumenta, o público não acredita no que presenciava: Arnaldo, vestido de cortesão medieval, segurando o seu contrabaixo negro como uma espada; Miss Lee, segurando seus pratos, vestida de noiva como uma personagem de contos infantis; Serginho com sua guitarra de ouro, trajado de toureiro com uma fita no cabelo e a guitarra acoplada em um pedal.
     “No chão / Eco... / Um sapato / Pisa o silêncio caminhante noturno”.
     A viagem mágica e misteriosa do som circulava pelo emudecido, Maracanãzinho e a direção do olhar se prendia a procura do palco. O lugar de onde irradia aquela hipnótica massa sonora responsável pela total atenção da platéia que não decifrava por completo o visual e o som.
     Ressonâncias, sons de um futuro próximo e a guitarra nas mãos de Sérgio vibrava continuadamente dentro do arranjo planejado por Rogério Duprat, um arranjo que permitia que o instrumento soasse como outros assim como um violino em perfeita harmonia o trio lembrava uma cavalaria ou o frenesi das touradas de Madri.
     "Começo, em 'ressonâncias, sons' - Pelo Amor de Deus!!! Não foi arranjo de Duprat nenhum que permitiu que o instrumento de Sérgio soasse como um violino! Foi o meu trabalho insano durante oito meses, varando noites e dias, para conceber e produzir tal instrumento: uma guitarra que criasse sons incontáveis; e um desses sons era adrede exatamente o do violino, que guitarra nenhuma, senão a Guitarra de Ouro, pôde gerar! O próprio Duprat só obteve o som elétrico em seu violoncelo com a minha ajuda, e esse som fazia o trabalho oposto: transformava o violoncelo, irmão do violino, em guitarra! Com trêmulo elétrico e tudo. Não foi coincidência alguma; sim, meu objetivo, mostrar que por meio dos agora rótulos 'guitarra' e 'violoncelo', a tecnologia expunha a Alma única desses instrumentos: a Música!". (CCDB©).
     "Vai caminhante antes do dia nascer / vai caminhante antes da noite morrer / vai caminhante.
     Quem eram aqueles caminhantes? Carregados de ironia e sotaque interiorano paulista que ousavam novamente a desafiar os “medalhões” e suas torcidas organizadas no sagrado templo da MPB?
     Não havia tempo nem condições suficientes para tentar entender e conseguir as respostas. Em situação de perigo e medo, a agressão foi a solução imediata para fugir daquele estado. Ao final da música, a platéia grita em coro como nos gramados: “Bicha! Bicha”.
     Arnaldo, Sérgio e Rita continuavam firmes defendendo o nome Mutantes e partindo para afirmar que o som do grupo era indestrutível e eterno.
     Novo choque! Todos vestiam o tradicional smoking ou roupas de gala e os meninos roubaram a festa e quase acabaram com o festival da Globo. Insulto e agressão que doeu demais nos colegas de ofício e na multidão que fazia coro. Grande parte da imprensa “lavou as teclas” e disseram: “amém!”. O discurso de Caetano Veloso refletia e os Mutantes de certa forma eram o espelho.
     Caminhante noturno obteve o sétimo lugar, referencial quase algum se se considerar o fato de que quase ninguém sabe o total das músicas inscritas. Numa noite de domingo carregado de alto teor ideológico onde a canção engajada de Geraldo Vandré Pra não dizer que não falei das flores ficou em segundo lugar e a vencedora uma parceria de Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda, “canção alienada” batizada de Sabiá entoada sob uma vaia colossal por Tom Jobim inutilmente ajudado pelas vozes de Cynara e Cybele. “A mais sonora vaia já acontecida em toda a história dos festivais de música popular”, escreveu o repórter da Folha de S. Paulo. Maior mesmo que a que fora despejada sobre Caetano Veloso e sua É proibido proibir, duas semanas antes, no TUCA, na primeira eliminatória paulista do FIC.
     “Chico livrou-se dessa porque estava em turnê pela Europa”.
     “Por favor, venha, não me deixe só”, pediu Tom num telegrama patético que o amigo interpretou como brincadeira. Mas pegou o avião e desembarcou no dia da vitória de Sabiá”.
     Alguns acreditavam que a classificação poderia ter sido melhor se durante a apresentação Os Mutantes tivessem recorrido aos efeitos especiais que posteriormente usaram no estúdio. Mas Caminhante noturno saiu em compacto onde se ouve ao final da música o coro da platéia gritando: “Bicha!, Bicha”. E, ironicamente, no outro lado do compacto a tranqüila Sabiá vencedora do III FIC. Mas, ironia mesmo foi o lançamento do compacto É proibido proibir que registra, na outra face, o inflamado discurso de Caetano Veloso sob a vaia, e que receber da gravadora o irônico título de Ambiente de festival.
     Paralelamente ao evento do festival, Gil, Caetano e os Mutantes iniciam uma temporada de shows na Boate Sucata, que era de Ricardo Amaral, o que Caetano ainda chama de “festival marginal ao festival que se seguia”.
     “Um espetáculo tropicalista. Como parte dos elementos visuais de cena, destacava-se a bandeira de Hélio Oiticica: ‘Seja marginal, seja herói’. O show, a bandeira de Hélio, alguns acordes que os Mutantes dedilhavam ao violão e que os censores confundiram com o Hino Nacional, tudo isso, mas principalmente a campanha de delação de um certo Randal Juliano, que todo dia pedia pela rádio e tevê a prisão de Caetano Veloso, levaram à proibição do show por um juiz, a ridículas acareações entre Amaral e Caetano, e à prisão do compositor”. (Zuenir Ventura).
     Depois de inovar as capas de discos e até hábitos de comportamento, os tropicalistas querem inovar a imagem da tevê. E, na extinta, porém saudosa TV Tupi no dia 26 de outubro de 1968, estreava o programa “Divino Maravilhoso”.
     No mesmo programa apresentavam-se artistas diversos e tão diferentes como Nara Leão, a ex-musa da Bossa Nova, Jorge Ben egresso da Jovem Guarda e recém-chegado dos Estados Unidos e os Mutantes tocando com Tom Zé um happening criado pelo poeta Torquato Neto. Descabelados, exibindo roupas extravagantes, com Caetano dançando sensualmente e literalmente lançando sobre o público presente novos livros de poesia. E Jards Macalé, e Paulinho da Viola mostrando suas primeiras composições.
     Um dos grandes momentos foi quando o produtor Fernando Faro teve a idéia óbvia. Virou-se para Gil e Jorge Ben, cada um empunhando um violão mais afinado e disse: “cês têm 10 minutos de programa. Façam o que quiserem”. E assim foi feito, e preenchido com a música Saí de mim, mulher de Jorge. Dez minutos, enfim sós, afinados com uma linha musical mista do blues ao samba, entrando no desafio nordestino, chegando ao rock ao baião, enfim, muito tudo.
     “'Divino Maravilhoso' era muito bom, porque não tinha patrocinador e eles deixavam a gente à vontade - diz Jorge Ben.
     Uma festa que durou pouco. A censura começou a dar em cima: “esse moço dançando é uma pouca vergonha, não pode continuar no ar” - o programa deixou de ir ao ar em novembro, e os baianos “enterraram” o tropicalismo em seu programa.
     Tom Zé, uns dois anos antes (1966), fez uma composição que permaneceu engavetada, sem título porque ele mesmo não gostava da música. E talvez a situação permanecesse assim até hoje, se não fosse o interesse de Rita pelos versos que resolveu terminar a letra e mostrar aos Mutantes.
     E no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de São Paulo, os Mutantes defenderam Dom Quixote com a colaboração de Rogério Duprat, do pseudo-guru Bororó e do grupo Anteontem 56 e meio - embrião do Joelho de Porco e ainda 2.001 a parceria entre Tom Zé e Rita Lee com a participação de Gilberto Gil e Liminha ex-baixista dos Baobás.
     "Em 'e no quarto Festival, Liminha' (Arnolpho Lima Filho); Liminha foi um dos que adquiriram guitarras de minha manufatura. A dele era instrumento sólido, a seu pedido uma cópia da Fender Jaguar - e bem melhor que a original. Muito mais tarde, Liminha veio a tocar e fazer várias gravações com a Guitarra-baixo de Ouro, lavorada em Jacarandá, que criei para o Arnaldo. Esse instrumento aparece em foto e som no elepê de Rita 'Hojé é o primeiro dia....'". (CCDB©).
     Os Baobás grupo de Liminha e Tico Terpins (Joelho de Porco) lançaram dois compactos produzidos por Roberto Carlos Real para o selo Rozemblit: Bye bye my darling / Pintando de preto versão de Paint it black e Happy together / Down down. No único LP lançado pelo grupo, os integrantes partiam para uma viagem psicodélica através de temas dos Doors (Light my fire) e Rolling Stones passando pelo soul de Otis Redding.
     Os Baobás “um dos enigmas do rock brasileiro” se associou, ainda que indiretamente, à Tropicália. Caetano Veloso ficou sem banda de acompanhamento, pois o conjunto argentino The Beat Boys, que acompanhara Alegria, alegria, acabara por se revoltar contra as condições impostas por Guilherme Araújo e decidira voltar para o iê-iê-iê, para o trabalho independente. E não se sabe como, Caetano descobriu os Baóbas para a vaga. Com os Baobás Liminha passou a freqüentar os programas de tevês no Rio e São Paulo e lá conheceu Gilberto Gil.
     Após Liminha deixar os Baobás, Gilberto Gil o convidou para dividir um banquinho no festival - tocando 2.001 em forma de dupla caipira: Gil e Jiló. Gil na sanfona e Liminha na viola fazendo o suporte sonoro para a eletricidade e roupas de plástico dos Mutantes assessorados por Rogério Duprat que tocou o piano.
     Para defender Dom Quixote, Rita vestiu-se de “Dulcinéia”, segurando agora um teremim - um tetravô dos sintetizadores, instrumento eletro magnético, baseado no princípio do radar, cujos sons são obtidos por movimento das mãos aproximando-se ou afastando-se dele. Mas o destaque mesmo ficou por conta de 2.001, onde Os Mutantes fizeram a primeira experiência trazendo o tom do som caipira par ao palco da tevê, na cidade, o que daria origem ao rock rural brasileiro dos anos 70.
     "Em 'para defender D. Quixote', o teremim em questão foi o primeiro que se montou no Brasil e um presente meu para Rita, o qual me custou semanas de trabalho para confeccionar e ajustar. Você pode procurar artigos recentes de Theophilo Augusto Pinto, os quais contam a história desse e doutros teremins brasileiros. O primeiro teremim foi inventado pelo russo Leon Theremin, em 1928 e era à válvula. Robert A. Moog fez o dele a transistores, e também transistorizado era o meu. Por falar nisso, Arnaldo não o proibiu na música... Novamente, eis a tecnologia condicionando a música; e eu, músico! Mas não gosto nem desse rótulo. Um dos motivos de ter escrito Géa foi mostrar que ninguém é apenas aquilo que dizem: músico, fabricante de guitarras, pedreiro e tal. Nem os mais cruéis assassinos o são, embora alguns desses não saibam... No supremo escrito, Géa, o "construtor de etérilas" (as guitarras do seu planeta dele) revela suas experiências, que refletem a Verdade das palavras acima, úteis à Leitora, ao Leitor”. (CCDB©).
      "Eis a minha tecnologia criando o 'roque rural brasileiro'! E fundindo tal já recém-nado rótulo em músicas... para as pessoas poderem parir mais rótulos! Toda essa fusão de rótulos era o meu caminho na época, rumo à Verdade no interior de Tudo, que é una. Minha obra literária Géa conta como o personagem Clausar alcançou essa Verdade e serve de guia para quem a procure, mas saiba seguir a sua própria senda. O mesmo 'desligamento' mental que os Mutantes revelavam não era em verdade ingênuo; sim, o fruto de muita conversação comigo e da própria busca de cada qual dessa mesma Verdade una, que já nos fazia propositadamente assumir aquela postura". (CCDB©).
     Naquele 9 de novembro de 1968, era divulgada a classificação final, Os Mutantes obtêm um modesto quarto lugar com 2.001, considerada como a melhor letra do festival. E Tom Zé seria o vencedor com a música São São Paulo (“São oito milhões de habitantes de todo canto e nação / Que se agridem cortesmente”).
     Um mês depois Tom Zé, lançaria o mais satírico LP de todo o movimento tropicalista, pelo extinto selo Rozemblit. O LP conta com arranjos excelentes dos maestros Damiano Cozzela e Sandino Hohagen, e apresenta Os Versáteis e Os Brazões como músicos acompanhantes. As músicas: São São Paulo, Curso intensivo de boas maneiras, Namorinho de portão, Não buzine que eu estou paquerando, Parque industrial, Sabor de burrice e outras.
     Caetano e Os Mutantes, acompanham Gal Costa em seu primeiro LP, que recebeu o título de “Só” e trazia músicas conhecidas como Divino Maravilhoso, Baby, The lost in paradise com letra de Caetano, em inglês.
      Em um final de ano exaustivo, a temporada na “Sucata! é interrompida, o programa cancelado, quando no Natal de 68, Caetano e Gil foram presos em suas casas por motivos que “desconhecemos” até hoje. Os baianos passaram dois meses de reclusão domiciliar, vivendo apenas em um círculo pequeno de amigos e parentes.
     “O movimento decaiu com a ausência de Gil e Caetano. É a falta de perspectiva. O próprio grupo inicial, que foi chamado de tropicalista, queixava-se de que a palavra estava gasta, contaminada por outros significados. Havia quem colocasse até Mário de Andrade e sambistas cariocas entre os tropicalistas”. (Rogério Duprat).
     "Em 'O movimento decaiu' vê-se um dos problemas dos rótulos. Não se confundam as minhas acepções de 'palavras" e 'rótulos': a palavra é a melhor aproximação da Verdade; o rótulo, uma verdade imposta".
(CCDB©).
     Os Mutantes figuram em duas coletâneas: IV Festival da Música Popular Brasileira, Volume I, realizado pela TV Record de São Paulo, com a capa marrom, letras pretas, eles defendem Dom Quixote, LP simples e no Volume II do mesmo IV Festival da Música Popular Brasileira, capa rosa, letras pretas Os Mutantes reaparecem com 2.001.
     No dia 13 de dezembro de 1968 - Costa e Silva assina o Ato Institucional N.º 5 (AI-5) e Ato Complementar N.º38, colocando o Congresso em recesso por tempo indeterminado. São presas em todo o país pessoas ligadas à oposição.
     Em cadeia nacional de rádio e televisão no mesmo dia às 20h30min, o ministro da justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva, anuncia a resposta do governo à sessão do Congresso Nacional: passa a vigorar por tempo indeterminado o AI-5, que possibilita ao governo entre outras medidas, decretar o recesso parlamentar, intervir nos estado sem as limitações previstas na Constituição, cassar mandatos e suspender direitos políticos. E 31 de dezembro, também em cadeia nacional de rádio e tevê, o presidente Costa e Silva afirma que o AI-5 era a única solução para combater a “ansiada restauração da aliança entre corrupção e subversão”.
     “São raros os anos que permanecem como referência, varando o tempo e ultrapassando outros anos. Muitos anos bem mais próximos já dançaram em nível de lembrança. Os efeitos de 1968 continuam na história e até hoje se discute a herança que ele deixou, sendo tanto para a juventude anêmica de hoje, quanto para qualquer outra aventura”. (Zuenir Ventura).
  


1968

 

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