Lendo Pedro Juan Gutierrez, com o coração vazio
(Por: Rodrigo Souves – DF 11 jan. / 2008)





     Dentro da coordenação, sozinho, horário de almoço, cheiro bom de bife com cebola, o colega não tem os medos constantes de bactérias e fungos e afins, deixa a marmita aberta na mesa e eu imagino se o sujo ar condicionado geral do prédio não manda partículas de imundícies, quando bebo sempre solicito para molharem a lata da cerveja, o colega considera isso coisa de "mocinha". Ele chega e pergunta algo, ignoro, estou com fones ouvindo Liverpool, uma banda carioca dos anos 60, um amigo músico sempre ouve, seu velho tio baixista participou da gravação, é suave o som, me acalma.
     O colega mastiga o bife com seus dentes encardidos, me impressiona o fato da dentadura ser desbotada e furada de tanto café e cigarros, quando o conheci ele não vinha trabalhar com dentes, quando colocou a dentadura pareceu que seu rosto aumentou muito verticalmente, ele se cansou das sacanagens alheias. Um dia o paraíba, um sujeito trabalhador, tosco como o que se convencionou nos anos 2000 chamar de "zé povinho", trouxe um envelope e deixou na mesa do colega, ele abriu e se espantou com o mau cheiro, jogou fora e nunca comentou o assunto, curioso fui até o paraíba que rindo me informou que se tratava de uns dentões que tiraram de um cavalo morto, não contou mais nada, reclamou da barriga doendo de tanto rir. Com a rotina diária me acostumei com o aspecto vertical do rosto do colega, quando ele tira os dentes seu rosto diminui um pouco e considero esquisito, nos acostumamos a quase tudo mesmo.
     A música do Liverpool me acalma mas por dentro estou tenso, essa tensão já dura quase quatro anos, trabalho a sete no mesmo posto e sou visto como alguém com possibilidades e que não é esperto, não sabe ganhar dinheiro com o conhecimento que detém. Não largo o emprego para estudar para não cair na desgraça de não ter dinheiro para se pagar o dia a dia, com quase trinta anos não posso exigir de meus pais boa comida na mesa, julgo que meu quarto deveria ser do meu sobrinho, gosto muito do garoto. Como repetido no bom filme "O Cheiro do Ralo", a vida é dura.
     Sou pragmático, quando vejo gente fazendo o contrário do que manifestam como valores absolutos, sempre exalto a hipocrisia do momento. São vários exemplos, às vezes pessoas que se dizem distintas não valem o que deixam no vaso, isso é um paradoxo e tanto.
     O tocador de mp3 começa a tocar Dead Kennedys, take this job and shove it, infelizmente não posso fazer isso, no momento não há possibilidade para eu mandar nada para a casa do caralho, quase tudo está me importando: minha família onde sou ausente, meus poucos amigos, a mãe de minha jóia que nem atende meu telefone, tudo. Concluo que realmente me convenceram que a vida é um rio que flui e eu estou agarrado a capins da margem, o problema é o que fazer para começar a mudança. Para não ser um martírio a tal mudança vou fazer algo fora do padrão do meu dia a dia: natação, me fará bem.
     Muitas elucubrações depois de uma longa conversa com o colega dos dentes encardidos, a situação é a mesma, apenas essas palavras ficaram no papel, fica meu registro para alguns finitos leitores, a vida é dura my brothers... nem sei mais se vale a pena ser mais racional que sentimental. Pedro Juan Gutiérrez em todos os seus livros se apresenta como um animal sexual, talvez bissexual, não importa, o importante que é que ele ganha a vida fazendo o que gosta, escrever.