Syd Barrett – Entre a luz e a sombra (2025)

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📸 Syd Barrett standing next to his painting in 1964. Photographed by John Gordon.

Introdução

As páginas que você tem em mãos não são apenas um livro, mas um arquivo de vestígios. Rabiscos em folhas amassadas, cartas enviadas a uma namorada adolescente, quadrinhos improvisados com caneta azul, memórias congeladas em fotografias granuladas. Cada fragmento aqui reunido revela muito mais do que simples documentos: juntos, constroem um retrato íntimo e inacabado de Syd Barrett.

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e jantar em Homerton antes de montarmos e começarmos. Aparentemente é um baile,
então é melhor você usar um vestido, ou algo assim, Jenny. Claro que haverá muito
para beber e comer, mas se você preferir fazer outra coisa com seus amigos, então
claro que deve fazer isso. Como você sabe, pode nos ver no The Alley, provavelmente,
no sábado, então você não precisará perder muito, mas eu adoraria que você viesse,
se quiser.

Esta semana o grupo dele se desfez, como eu achei que aconteceria, e nós não
tocaremos juntos novamente depois de Cambridge, mas isso provavelmente tornará
mais divertido quando tocarmos.

Hoje à noite fui ao 100 Club, na Oxford Street. Twistravagrooveygroove, e vi

Em 1965, antes da fama, Barrett escrevia cartas a Jenny Spires. Em uma delas, convida-a para um baile em Homerton, recomenda que vista um vestido, e termina com humor: “Tonight I went to the 100 Club, in Oxford Street. Twistravegrooveygroove…” — uma palavra inventada que parece já conter a semente da psicodelia. São pequenos lampejos do mesmo espírito que criaria The Piper at the Gates of Dawn.

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JON
Uma história.
OI!
Jon tinha uma companheira humana para a viagem – Julie!
UAU!
ELA ADORAVA → J
BEIJO!
ZEPKON
PLANETA ESCURO, TERRAR
Mais tarde, querida, agora vamos com a parte da trama enquanto embarcamos na nave na Terra.
Nave espacial?
MAIS UM TEMPO

No mesmo período, rabisca HQs como Jon – A Story, em que o herói atravessa galáxias e beija uma companheira chamada Julie. O desenho é tosco, quase infantil, mas prenuncia os universos paralelos que Barrett imaginaria em suas letras. Naves espaciais, planetas sombrios e beijos cósmicos: o delírio gráfico de um jovem estudante de arte que ainda não sabia que mudaria o som de uma geração.

Dois anos depois, em 1967, aquele garoto transformaria o Pink Floyd em ícone da cena londrina. The Piper at the Gates of Dawn não foi apenas um disco: foi a explosão de uma linguagem. Entre contos de fadas distorcidos (The Gnome), viagens infinitas (Interstellar Overdrive) e canções de ternura absurda (Bike), Barrett tornou-se a voz e o rosto da psicodelia.

Mas esta introdução não é apenas sobre o apogeu. É também sobre o declínio. Em 1974, já afastado da banda, Barrett foi levado a Abbey Road para sessões de gravação que hoje soam como fragmentos de uma mente em suspensão. Técnicos lembram dele chegando com guitarras ainda nas caixas, até com uma sem cordas, sentando-se em silêncio diante do microfone. A sala, que tantas vezes recebeu os Beatles, tornava-se palco de uma quase ausência.

Essas páginas — cartas, quadrinhos, fotos, lembranças — formam um álbum ilustrado do silêncio e da invenção. Elas contam uma história que não se fecha: a do menino de Cambridge que virou mito psicodélico e, ao mesmo tempo, recluso anônimo. Entre luz e sombra, Syd Barrett permanece como figura incontornável: inventor de mundos, criador de palavras impossíveis, viajante de planetas internos.

Abrir este livro é como atravessar uma porta lateral de Abbey Road, espiar pelas cartas enviadas a Jenny, sorrir com os desenhos de naves e personagens de HQ, e ouvir, ainda que distante, a promessa de uma canção que nunca chegou a se completar.

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Jenny Spires (left) and Syd Barrett in 1967.

Syd Barrett – Entre a luz e a sombra

Em 1965, Roger Keith “Syd” Barrett já era uma presença inquieta em Cambridge. Ainda estudante de arte, escrevia cartas para Jenny Spires, ilustradas com quadrinhos espontâneos como Jon – A Story, misturando romance adolescente, viagens espaciais e nonsense psicodélico. Nelas apareciam expressões inventadas — twistravegrooveygroove — que já antecipavam seu estilo lírico único. Nos ensaios do Pink Floyd em pubs e bailes estudantis, Barrett surgia como líder carismático, embora ainda houvesse incerteza se o grupo sobreviveria. Em uma carta de maio de 1965, chega a dizer a Jenny que “a banda se separou”, apenas para retomar poucos meses depois.

Dois anos depois, em 1967, o improvável aconteceu: Syd e o Pink Floyd tornaram-se o epicentro da nova cena psicodélica londrina. O álbum The Piper at the Gates of Dawn condensou sua visão — contos de fadas distorcidos, improvisos cósmicos como Interstellar Overdrive, lirismo infantil em Bike. Barrett era, ao mesmo tempo, poeta pop e mago elétrico. Foi também o rosto do grupo, fotografado por Vic Singh com lente prismática de George Harrison, na capa que se tornaria símbolo da explosão psicodélica.

Mas o brilho foi breve. Entre 1968 e 1970, sua instabilidade mental e o uso intensivo de LSD minaram sua capacidade de se manter em banda. Ainda assim, suas canções solo — The Madcap Laughs (1970) e Barrett (1970) — capturaram tanto sua delicadeza quanto seu desmoronamento. Produzidas com dificuldade por David Gilmour e Roger Waters, eram registros fragmentários, por vezes dolorosos, mas carregados de momentos de beleza.

De 1970 a 1974, houve raros retornos ao estúdio. O mais notório ocorreu em agosto de 1974, quando a EMI, incentivada pelo sucesso colossal de The Dark Side of the Moon, levou Barrett a Abbey Road para tentar novas gravações. Ele chegou pontualmente, trazendo instrumentos novos — alguns ainda em caixas — e, segundo a lenda, até uma guitarra sem cordas.

O Studio 3 de Abbey Road ainda tinha cheiro de madeira encerada, cabos enrolados, o vidro da sala de controle refletindo luz suave. Técnicos como John Leckie descrevem Barrett sentado em silêncio, por vezes dedilhando acordes para logo em seguida parar, como se esquecesse para onde a música ia. “Era como terapia ocupacional”, disse o produtor Peter Jenner. Quando olhava pela janela lateral, via-se a faixa de pedestres que mais tarde ficaria imortalizada na capa dos Beatles. Os engenheiros lembram de rir nervosamente ao observar Syd atravessando a rua e sumindo — se virava à esquerda, voltava; se virava à direita, desaparecia pelo resto do dia.

As fitas dessas sessões registraram blues desconexos, tentativas de boogies repetidos, ideias nunca completadas. Jenner recorda: “Ele era a pessoa mais criativa que já conheci, antes ou depois. Mas em 1974, era apenas uma sombra. De vez em quando um lampejo surgia, e desaparecia.”

Depois disso, Barrett abandonou a música por completo. Visto ocasionalmente em Cambridge, andando de bicicleta ou em lojas com a irmã Rosemary, tornou-se uma figura quase fantasmagórica. Amigos antigos diziam que era melhor não falar com ele, que já não reconhecia rostos do passado. Ainda assim, sua presença marcava todos os que o haviam conhecido. Rosemary lembrava: “Chamávamos ele de Roger, não de Syd. Era alguém da família, não o mito.”

Em 2006, Barrett morreu em Cambridge, após décadas de reclusão. As descrições de quem conviveu com ele até o fim falam de um homem calado, simples, mas ainda capaz de sorrir, pintar ou cultivar o jardim. Um sobrevivente silencioso, carregando a memória do que poderia ter sido.

Hoje, ao folhear suas cartas, seus quadrinhos rabiscados para Jenny Spires, ouvir as gravações caóticas de 1974 ou olhar a capa prismática de 1967, o mito de Syd Barrett continua vivo. A guitarra sem cordas em Abbey Road é apenas uma lenda — mas como toda lenda, reflete uma verdade: havia nele música que nunca chegou a soar.