Epicurismo e os Primórdios do Anarquismo (2025)
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Epicurismo e os Primórdios do Anarquismo: uma abordagem subterrânea
Anísio Vieira
O epicurismo, fundado por Epicuro no século IV a.C., é frequentemente reduzido a uma filosofia hedonista, mas sua radicalidade reside na defesa da libertação do ser humano das amarras do medo, da superstição e do poder opressor. Epicuro pregava a ataraxia (ausência de perturbação) e a autarkeia (autossuficiência), conceitos que ecoariam, séculos depois, nos ideais libertários do século XIX. Seu jardim em Atenas — uma comunidade autônoma, sem hierarquias, onde amigos buscavam uma vida simples — foi um proto-experimento anarquista: um espaço de recusa ao Estado, à religião dogmática e à acumulação de riquezas.
Pontes com o Anarquismo Coletivista
Alguns pensadores anarquistas europeus do século XIX, como Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon, partilhavam com Epicuro a desconfiança profunda em relação ao poder centralizado. Para ambos, a autoridade política e religiosa era fonte de corrupção e servidão material e espiritual. Bakunin, em Deus e o Estado, atacava a religião como instrumento de dominação — ecoando Epicuro, que via o medo dos deuses como obstáculo à liberdade.
Já Pyotr Kropotkin, em Apoio Mútuo, defendia que a cooperação, e não a competição, era a base da natureza humana. Aqui ressoa o epicurismo: para Epicuro, a amizade (philia) era o maior bem — uma forma de solidariedade orgânica que dispensava contratos sociais coercitivos. O jardim epicurista, assim como as comunas anarquistas, funcionava por meio de pactos voluntários, não de leis impostas.
Epicuro e a Economia Libertária
A crítica epicurista ao desejo infinito por riquezas antecipa a condenação anarquista ao capitalismo. Epicuro distinguia desejos naturais (comer, abrigar-se) de desejos vãos (luxo, poder) — uma divisão que William Godwin e Élisée Reclus retomariam ao defender uma economia baseada em necessidades reais, não na acumulação. Para os coletivistas, a propriedade privada era um “desejo vão” epicurista: uma ilusão que gerava desigualdade e infelicidade.
Autogestão e Prazer Radical
O epicurismo via o prazer não como libertinagem, mas como liberdade de ser. Essa ideia reverbera em Max Stirner, que, em O Único e Sua Propriedade, defendia a soberania do indivíduo contra todas as abstrações (Estado, moral, ideologia). Stirner, porém, radicalizava: se Epicuro buscava a tranquilidade por meio da moderação, Stirner pregava a afirmação egoísta do desejo — mas ambos partilhavam a desconfiança em instituições que limitam a autonomia.
Já os anarquistas coletivistas, como James Guillaume, uniam epicurismo e ação direta: propunham que a felicidade só seria possível em comunidades autogeridas, onde o trabalho fosse voluntário e os frutos, compartilhados. O lema “De cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo sua necessidade” (mais tarde associado ao marxismo) tem raízes na ética epicurista de equilíbrio e reciprocidade.
Um Legado de Rebeldia
Epicuro não era anarquista — sua filosofia era mais contemplativa que revolucionária —, mas plantou as sementes da desobediência. Seu jardim foi um ato de resistência: recusar a polis ateniense, o mercado e o teatro do poder. Do mesmo modo, os anarquistas do século XIX viam na autogestão comunal uma forma de escapar ao Estado-nação industrial, que transformara seres humanos em engrenagens.
A máxima epicurista “Vive oculto!” poderia ser relida como um chamado à insurgência silenciosa: construir, nas brechas do sistema, espaços de liberdade. Os anarquistas coletivistas fizeram isso em suas cooperativas e sindicatos, enquanto individualistas como Émile Armand defendiam comunidades baseadas no prazer compartilhado e na ajuda mútua.
Conclusão: A Filosofia do Jardim e da Barricada
Epicurismo e anarquismo compartilham um núcleo ético: a crença de que a verdadeira felicidade exige a destruição de todas as formas de dominação — seja a do medo (dos deuses, do Estado), seja a da escassez artificial (criada pelo capital). Enquanto Epicuro buscava a paz interior por meio da simplicidade, os anarquistas do século XIX queriam transformar essa paz em projeto político.
Juntos, eles nos lembram que a liberdade não é um presente do poder, mas uma prática diária de desapego, rebeldia e solidariedade. Como escreveu Kropotkin: “A anarquia é a expressão máxima da ordem” — e tal ordem começa no jardim de cada um, onde o prazer de existir não precisa ser negociado com tiranos.
Anísio Vieira
Paquetá, abril de 2025
P.S. Este texto — que aproxima epicurismo e anarquismo — não busca estabelecer uma relação histórica ou documental entre essas correntes. Afinal, separam-nas mais de dois milênios: de um lado, o Jardim de Epicuro, espaço de serenidade filosófica; de outro, as barricadas anarquistas, símbolos de rebeldia política. Trata-se, antes, de um exercício especulativo, destinado a celebrar o espírito livre que, em ambas as tradições, desafia dogmas.
Seja na busca epicurista pela ataraxia (a paz interior alcançada pela moderação e autossuficiência), seja na desobediência anarquista às convenções opressoras, há um fio comum: a recusa a sistemas que aprisionam o humano. A vida, como lembra Epicuro, é breve demais para nos submetermos a hierarquias vazias ou ansiedades impostas.
Que os acadêmicos guardem a factualidade; aqui, preferimos o afeto e a ousadia de ligar pontos distantes no mapa das ideias. Afinal, filosofar é também brincar com o fogo das conexões inesperadas — desde que não queimemos a história no processo.