Adaptada à realidade candanga, a famosa poesia A caminho com Maiakovski

Adaptada à realidade candanga, a famosa poesia A caminho com Maiakovski, de Bertolt Brecht, bem que poderia ser assim
Chico Sat’Anna

Na primeira noite, eles invadem a área verde, fincam uma cerca, se apropriam d'área pública, roubam nosso jardim: não dizemos nada.Na segunda, já não se escondem. Fazem um puxadinho, abrem um bar, instalam garagens, ampliam o gabarito e não dizemos nada.Até que um dia, o mais frágil deles desrespeita o tombamento, ergue prédios de 30 andares, criam uma nova quadra, ignora a condição de patrimônio da humanidade, rouba-nos a qualidade de vida e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.E já não podemos dizer nada.Creio que é assim que, talvez, muitos brasilienses se sentem ao passar por Águas Claras, cidade projetada inicialmente para ter prédios de no máximo oito andares – dois além do Plano Piloto – e se depara com arranha-céus de até 30 andares.

Assim, podem estar sentindo aqueles que viajam espremidos diariamente nos ônibus de Brasília.

Deve ser assim também a reação de pedestres, ao caminhar pelas quadras das 700, deparando-se com becos sombrios ladeados por gradis utilizados para ampliar "o mar territorial" das residências. No lugar dos gramados públicos, estacionamentos, churrasqueiras, quiosques privados, todos construídos a partir do roubo de áreas públicas.

Deve ser esta a emoção de quem caminha pelos fundos das quadras comerciais voltadas para as super-quadras, e constata uma proliferação de barracos edificados pelos comerciantes, verdadeiras favelas nas barbas das autoridades do poder local.

Deve ser igualmente esse o sentimento da sociedade ao se deparar com iniciativas legislativas do quilate do projeto de lei 7999/2010, de autoria do deputado federal Geraldo Magela, que pretende comer uma fatia do Parque Nacional de Brasília sob a justificativa de regularizar 24 ocupações irregulares.

Ou ainda, do quilate da PEC 422/2009, de autoria do hoje vice-governador Tadeu Filippelli – e alçada ao vento como principal bandeira do presidente do recém criado PSD-DF, Rogério Rosso - , que estabelece a transferência de seis municípios goianos para o Distrito Federal. A justificativa?  Levar para 300 mil pessoas a mesma qualidade de vida do de Brasília. Se ampliar o território do Distrito Federal fosse solução para superar as desigualdades sociais do país, bastaria mudar o nome do Brasil para Distrito Federal e deixar o país inteiro sob a administração do Palácio do Buriti.

Esses são apenas alguns exemplos que deveriam provocar a nossa indignação cotidiana e nos levar a indagar: o que essas pessoas querem de Brasília? E será que elas querem alguma coisa para Brasília, ou apenas para elas mesmas?

Quando o GDF propõe criar uma nova quadra, a 901, para abrigar hotéis para a Copa do Mundo - camuflando o surgimento de um novo setor habitacional no Plano Piloto e burlando o projeto original de Lúcio Costa – ele está pensando em quem?.

Quando o GDF permite que áreas como as nascentes do Parque Olhos D'Água possam ser aterradas por obras de um centro comercial, quando cogita em comer uma parte do Parque do Guará para abrigar um setor residencial, quando fica inerte diante da transformação do Parque das Sucupiras numa super super-quadra de 21 blocos no Sudoeste, certamente ele não está pensando no futuro de Brasília, na poluição ambiental, no aquecimento urbano, na mobilidade dos seus moradores.

Quando Agnelo e seus urbanistas propõem alterar o gabarito do Setor Hoteleiro, permitindo que os lotes que abrigam hotéis de dois e três andares possam ser demolidos para receber prédios com dez, doze, quatorze andares, ele pretende beneficiar a quem?

Nos especuladores imobiliários, nas empreiteiras e construtoras? No custeio da campanha de 2014? Ele pode estar pensando em tudo, certamente não na qualidade de vida dos brasilienses. Pois se este fosse seu pensamento, o foco seriam nas reformas profundas nas áreas de saúde, educação, segurança, transporte.

O lucro imediato, o ganho de poucos em detrimento de quase todos, a ganância desmedida da economia local parecem ter transformado o governo do Distrito Federal e sua Câmara Legislativa num escritório de resolver problemas dos especuladores imobiliários em detrimento dos brasilienses.

Chego até pensar que a nossa Lei Orgânica abriga a famosa Lei de Gerson. Aquela que preconiza levar vantagem em tudo.

Para justificar tal desgoverno, o pretenso discurso de que a cidade tem que crescer, tem que se desenvolver. Cidades, como as pessoas, chegam as suas idades de maturação e, a partir daí, o que deve ser feito são as intervenções pontuais: melhoria do transporte, introdução de novas tecnologias, VLT, humanização social, incentivo ao uso do transporte coletivo, ampliação de áreas verdes, parques, ciclovias, melhorias na saúde e na educação públicas.

Esta já é uma lista mais do que ampla. Qualquer governo que conseguisse realizá-la a contento, seria lembrado para o resto da eternidade.

As cidades não precisam crescer permanentemente. Nem pros lados, nem pra cima. Se assim fosse necessário, que altura teriam os prédios em Roma, Paris, que dimensão teriam cidades como Ouro Preto?
É preciso dar um basta neste desgoverno. Neste não, nestes. Partidos atrás partidos. Sai Roriz, entra Arruda. Sai Arruda, entra Paulo Otávio, Rosso, Agnelo e a "turma da mudança", mas nada muda. A sanha especulativa é a palavra de ordem. Tudo para ela, nada para a população local.

Salvo algumas reações pelos defensores dos parques, o que vemos é uma cidade atônita. Mas ai vai um alerta a todos. Um basta a tudo isso só vai acontecer se os brasilienses não ficarem iguais às personagens citadas por Brecht. Brasiliense, não deixe que nossa voz seja arrancada da garganta. Ponha você também a voz para fora, em alto e bom som, faça isso logo, antes que não possamos mais gritar.