Andy Warhol: material guardado por ele em 610 caixas

Museu exibe material guardado por Andy Warhol em 610 caixas
 
SILAS MARTÍ
da Folha de S.Paulo

 

7 set. / 2009 - No verão de 1974, Andy Warhol decidiu mudar seu estúdio para um prédio no outro lado da rua, da Union Square West para uma esquina da Broadway. Queria juntar no mesmo piso as obras e objetos que já ocupavam três andares do ateliê que deixava para trás -o mesmo onde levou tiros calibre 32 no baço, estômago, fígado, esôfago e nos pulmões disparados pela atriz Valerie Solanas, num atentado em 1968.

Sobreviveu e, seis anos depois, quis abrir uma nova Factory, nome que dava a seus estúdios. Não queria estranhos mexendo nas coisas e determinou que seus assistentes pessoais teriam de carregar tudo para o novo endereço. Então um deles, Vincent Fremont, desceu à rua e voltou com centenas de caixas modelo 42 F da A & A Carton Company.

"Disse que as caixas poderiam ser como cápsulas do tempo, e o Andy gostou muito disso", lembra Fremont, que dirigiu a Factory por 20 anos. "Ele passou a ter sempre uma caixa perto da mesa dele e jogava tudo dentro. Fez isso até morrer."


 
Caixa com itens dos anos 60 e 70, que inclui jornal com manchete da morte do presidente John Kennedy, catálogos e convites 

De 1974 a 1987, quando Warhol não sobreviveu a uma cirurgia na vesícula, conseguiu encher 610 caixas com tudo que passou na sua vida: desenhos, anotações, convites, fotografias, até restos de comida.

Agora o Museu Andy Warhol, em Pittsburgh, contratou quatro arquivistas para catalogar tudo que foi encaixotado pelo maior nome da pop art e pretende lançar neste mês um blog para destacar, semana a semana, os tesouros de Warhol.

Tem um pôster autografado de Jackie Kennedy nua, cópias assinadas de livros de Tennessee Williams, Truman Capote e Allen Ginsberg. Um pedaço embolorado de um bolo de casamento, pão mofado, pastilhas de menta. Cartas de Elizabeth Taylor e Arnold Schwarzenegger, convites para a festa de inauguração do Studio 54.

"Andy guardava tudo e todos os tipos de coisas, de envelopes vazios ou nunca usados a grandes cartas de celebridades", conta Matt Wrbican, arquivista do museu. Ele deve passar os próximos seis anos mergulhado nas pilhas de caixas, tempo que deve levar para inventariar o que sobrou da vida de Warhol.

É como se o artista que fez do escrutínio da condição de celebridade o mote central de sua obra agora virasse vítima da própria lógica, uma estrela fetichizada um tanto em vida e cada vez mais depois da morte.

Nos inventários dos itens de algumas caixas, obtidos pela Folha, estão instruções detalhadas para preservar até mesmo um pedaço de pão num embrulho plástico, já invadido por insetos que devoraram parte das sobras. Também foram contadas as balas Altoids esquecidas em várias embalagens -estão nas caixas 171 e 227.

Esse cuidado obsessivo se sustenta na visão de parte do entourage do artista, que vê o conjunto de suas cápsulas do tempo como obra. Ele mesmo considerava, como escreveu em seus diários, que essas caixas poderiam ser trabalhos em si. Pensou até em vender algumas delas, mas não conseguia se desfazer de quase nada.

"Encaramos mesmo isso como obra de arte, um trabalho em série, com 600 partes", diz Wrbican. "No diário, ele falava em vender isso tudo, só que às cegas, já que o comprador não poderia olhar o que estava na caixa antes de levar para casa."

Obsessão pelo comum

Warhol nunca foi em frente com a ideia porque gostava de acumular tudo, num colecionismo voraz de fragmentos do tempo, índices banais da época. "Ele não conseguia jogar nada fora", lembra Wrbican. "Andy gostava de tudo em grandes quantidades, não comprava um de nada, eram sempre dez, adorava ter muitos múltiplos de múltiplos", completa Fremont.

Mesmo das coisas sem valor. Warhol tinha obsessão pelo comum, a coisa qualquer, e gostava mais ainda se fosse algo que não era vendido. Roubava talheres de trens e aviões, fazia estoques de caixinhas de fósforo quando ainda eram distribuídas nos voos da Air France.

"Era um processo de documentar o seu tempo, a cultura em que ele vivia, as pessoas que conhecia", descreve Fremont. "É um momento congelado no tempo, um pedaço dos anos 70 e dos anos 80 que vai durar enquanto houver essas caixas, como num mapa do passado."

Fremont também acredita que os índices reais da vida ardida de Warhol possam esclarecer algumas questões e desmontar mitos que surgiram em torno da Factory e os excessos de purpurina e anfetaminas.

Se essa mitologia apagou parte do discurso, também ressalta uma contradição. "Ser fascinado pelo que já foi é diferente de ser fascinado por algo que existe agora", diz Christopher Makos, fotógrafo que trabalhou com Warhol e registrava suas viagens pelo mundo. "Andy era conhecido por ser do momento, queria ver o último filme, ouvir o último disco. Nem ele entenderia esse fascínio de agora por seu próprio passado."

E o passado de Warhol ofusca o presente dos que sobreviveram à Factory. Makos deve sua carreira fotográfica aos registros que fez do artista e até hoje é chamado para expor retratos e trabalhos daquela época.

Já Paul Morrissey, que produziu os filmes de Warhol, se ressente de ter sido sempre relegado a um segundo plano nos créditos. Ele vê na história das caixas uma metáfora triste da personalidade de Warhol. "Ele era uma caixa vazia e usava seu nome para apresentar o trabalho dos outros", diz Morrissey.

Mas não importa para a história e seus fetiches. "Só existe um Andy", diz Peter Wise, outro assistente do artista. "Da mesma forma que só existe um Elvis ou um Deus."